domingo, 20 de setembro de 2015

A Revolução Farroupilha e o (Polêmico) Morticínio em Porongos

por João Paulo da Fontoura
Neste próximo 20 de setembro, tão cantado e decantado em prosa e verso pelos amantes do tradicionalismo gaúcho, estaremos comemorando 180 anos do início da Revolução Farroupilha. 
Dois meses mais, e teremos, exatos, 171 anos do polêmico episódio do morticínio dos Lanceiros Negros em Porongos, episódio este, nódoa em nossa história, que os tradicionalistas preferem, pela polêmica gerada, “deixar de lado”.
Tenho de ter muito cuidado em escrever sobre estes dois temas, principalmente Porongos, pois tem havido um mar de teses desconstruindo tudo e todos relacionados à nossa história. Há gente, extremamente de mal com a vida ou, pior ainda, por questões meramente ideológicas, useira no cometimento de teses rasteiras e parcamente objetivas sobre o assunto. Há casos mais gerais (Dom Pedro I: de herói da independência passa a um reles alcoviteiro; o nosso Bento Gonçalves: de herói farroupilha torna-se ladrão de cavalos; o grande Duque de Caxias: de líder vencedor da guerra do Paraguai torna-se um cruel genocida) em que a lógica destruidora dos nossos heróis beira à misantropia. Quero deixar claro aqui que em absoluto sou contra estudos – sérios – que revisem e retifiquem a história oficial. Sou contra o exagero, a irresponsabilidade, o achismo, só.
A Revolução de 35, a nossa Revolução Farroupilha, é a mais importante na história brasileira, pois foi a que mais próximo chegou a uma secessão no sólido império brasileiro, a que se espraiou até a vizinha Santa Catarina gerando a efêmera República Juliana. Há também a questão da duração, 10 anos de briga intestina, não é fácil! Tem ainda o fato (por muitos do resto do país escamoteado) de que o Ditador Argentino, o Rosas, estava pronto para liderar, junto com o Uruguai e a nossa República Rio-grandense, a construção de um novo gigante meridional. Portanto, mesmo que no resto do Brasil se brinque que a “revolução farroupilha foi uma guerra que perdemos, negociamos por empate e festejamos como vitoriosos”, nossos líderes mantiveram-se firmes e acabaram negociando uma paz JUSTA! Pra mim, somos vencedores e carece festejar, muito!
A Corte Imperial tinha medo que os rio-grandenses se unissem aos platinos e formassem um estado forte e ameaçador ao domínio do Império no sul da América. Portanto, mesmo “derrotados”, negociamos e ganhamos do Império: anistia a todos os revoltosos; integração dos oficiais rebeldes ao Exército Imperial com as suas respectivas patentes; liberdade para os escravos que haviam participado da guerra (cabe aqui ressaltar o triste episódio de Porongos – que detalharei abaixo); devolução a seus donos de todas as propriedades ocupadas ou confiscadas durante a guerra; pagamento pelo Império das dívidas; e, por fim, a indicação do presidente da Província pelos Farrapos.
Mesmo que não tenhamos sido vencedores na questão das ideias, ou seja, no ideal de um mundo novo por aqui, com a não intervenção do Estado na economia; com o controle do poder Executivo pelo Legislativo para se evitar o estado absoluto; com a federação das províncias; com uma nova e moderna Constituição; pela solução econômica do charque e, idem, do imposto sobre o sal importado, para quem – o Império Brasileiro – tinha como hábito “esmigalhar” os revoltosos revolucionários (forca para os líderes, desterro para os participantes menores), não podemos questionar, pois foi uma boa negociação, não concordam?
Outra questão: foi uma revolução democrática, do povo? Obviamente que não. Não havia como. Numa província com uma população de 400 mil rio-grandenses (não gaúchos: gaúcho por esta época era um termo altamente pejorativo que denominava uma massa de analfabetos boçais e selvagens, uma bugrada de bêbedos livres, nunca assalariados, de saqueadores, homicidas e estupradores) com apenas 5% de alfabetizados, uma revolução somente poderia ser feita por uma elite abonada e intelectualizada de estancieiros.
Mesmos os críticos da revolução concordam que os “os ideais liberais e republicanos dos farroupilhas eram progressistas em relação à Monarquia brasileira”.
Como o Império, que era impermeável a qualquer mudança, mínima que fosse, e além de tudo tinha o fato de estar sendo governado por regentes, não atendia os apelos dos sulistas, foi declarada a guerra.
Da guerra adveio a gloriosa República de Piratini; as batalhas heroicas, as gestas épicas; a prisão e a fuga do general Bento; a dilatação do movimento com a formação da República Juliana na vizinha Santa Catarina; o início a partir de 1840 da perda de territórios conquistados, sendo a batalha de Ponche Verde, em 1843, o último sucesso bélico farrapo; as inevitáveis desinteligências entre os bravos líderes; das desinteligências, os ódios, rancores como, por exemplo, o lamentável episódio do duelo entre o Bento e o Onofre Pires que acaba na morte do Onofre; os anos derradeiros com a busca pela de paz via negociação com os Imperiais; e, por fim, dez anos depois, exauridos, em 25 de fevereiro de 1845, nos campos de Ponche Verde, com a leitura dos termos por parte de Fontoura e a necessária anuência da maioria dos oficiais farrapos presentes, a lavratura da Paz!
Em epílogo ao texto (talvez, pela importância do tema, um epílogo por demais longo) o “polêmico” episódio de Porongos ou, houve ou não traição?
Quantas vezes, nas quentes tardes de desfiles farroupilhas dos 20 de setembro, tenho visto alguns negros e negras, orgulhosamente trajados com o rigor que a tradição manda, desfilarem sobre seus belos cavalos pelas enfeitadas ruas da nossa cidade! Será, me questiono, será que eles sabem do episódio de Porongos?
Eu li e reli inúmeros livros, documentos, teses sobre o mesmo. Mesmo assim, não tenho opinião formada. Existem argumentos muito bons para ambas as teses. Vou, de uma maneira rápida, listá-los para o discernimento dos amigos leitores. Cada um que faça a sua convicção.
A favor da traição: 
A questão dos negros que lutaram pelos farroupilhas, era um óbice à paz; os republicanos exigiam alforria para todos e, com isso, criavam um brete às negociações com os imperiais. Para os líderes da corte, mesmo querendo resolver logo a questão sulina, a instituição do escravagismo continuava sendo um forte instrumento de “unificação nacional”, algo imexível: mesmo injusto, mesmo moralmente errado, era a forma de manter os “poderosos” donos de terras em paz e sintonia com o Império. É cínico, mas era assim que funcionava. Então, com o intuito de finalizar a guerra, o taquariense David Canabarro, mancomunado com Caxias, teria mandado, na madrugada de 14 de novembro, desarmar todos os escravos. Afirmam alguns a existência de uma carta de Caxias mandando o coronel Francisco Pedro de Abreu, o Pedro Moringue, atacar o acampamento e matar os desarmados lanceiros negros e poupar somente os brancos e índios. E assim foi feito. O Corpo de Lanceiros Negros, 600 valentes guerreiros, desarmados, desprotegidos, foi dizimado! Convenientemente, Canabarro e alguns altos oficiais, tinham se retirado do acampamento para resolver problemas. O entrave às negociações não existia mais. Três meses após, a paz foi assinada. Como prova da traição de Canabarro, ele foi processado pelos Republicanos. Não deu em nada, até porque que o julgamento foi na corte.
Contra, não houve traição, só uma fatalidade de guerra: 
Houve, isto sim, um ato isolado do louco Moringue que atacou o acampamento por moto-próprio, na tentativa de se promover junto a Caxias. Jamais Caxias (que, a par de ter sido um competente comandante, era um homem extremamente culto, inteligente, amante de ciência, foi um dos promotores da instalação no Rio de Janeiro do primeiro observatório astronômico brasileiro) daria tal ordem, e, na condição de governador da província, era o maior interessado na paz imediata. Havia um decreto de suspensão das armas, o armistício. As negociações pela paz estavam muito adiantadas. O desarmamento dos Lanceiros Negros inseria-se neste contexto. Mais duas provas irrefutáveis: o próprio Canabarro foi pego de surpresa e teve de fugir com suas roupas de baixo da tenda da sua amante, a “papagaia” (casada com um boticário/médico taquariense, de nome João Duarte, das tropas farrapas conhecido por “papagaio”); ora, se soubesse do ataque jamais seria pego com as calças nas mãos! A outra prova: o negociante republicano pela paz junto à Corte, o plenipotenciário Antônio Vicente da Fontoura, estava de viagem marcada para o Rio de Janeiro e dormiu no acampamento, tendo na fuga extraviado documentos importantes. Não faz senso! No seu diário, escreve Fontoura: - “Bagé, 18 de novembro de 1844. Como são falíveis os juízos dos mortais! Minha carta de 13, e esta, bem o provam. Não quero fazer, porém, a descrição do revés que tivemos a 14, porque o Gabriel vai e ele que o conte. Fui feliz e tudo quanto nos pertence. Os meus possuelos foram-se. Ficou a Lindoca sem a sua caixa de tintas e a Bindunga sem o lenço!
Cada um julgue conforme sua consciência. Como já disse, alhures, eu ainda não tenho (e talvez nunca o tenha) um juízo formado. Agora, eu negro, jamais festejaria o 20 de setembro sem que a questão fosse aclarada. Julgo que uma comissão de notáveis historiadores, gente com alto saber, com um mínimo de 50% de negros, estudasse o polêmico episódio e emitisse um parecer final. A verdade absoluta, até mesmo pelo tempo, dificilmente será alcançada, mas, com critério, objetividade e isenção podemos sim ao menos trazer a verdade a uma distância mais próxima da realidade.
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