segunda-feira, 23 de junho de 2008

O Uso de Biometria na Eleição

Sob nenhum ângulo que se examine com mais cuidado, como o político, o da segurança e o econômico, se encontra argumentos que justifiquem o enorme gasto que o administrador e justiça eleitoral pretende incorrer com a adoção das urnas-e biométricas que, no resto do mundo, são evitadas e até proibidas.
por Amilcar Brunazo Filho (*)
Em 2008, o TSE estará testando a identificação dos eleitores por impressão digital acoplada às novas urnas eletrônicas, que estão sendo chamadas de urnas biométricas ou, simplificadamente, urnas-B. O teste será desenvolvido durante as eleições de 2008, em três municípios — Colorado do Oeste/RO, São João Batista/SC e Fátima do Sul/MS. Em março e abril foi feito o recadastramento nestas cidades, com a coleta das impressões digitais dos dez dedos e da foto digitalizada em alta resolução dos eleitores. Em junho e julho serão feitos testes simulados com os próprios eleitores. Finalmente em outubro haverá a primeira eleição com biometria nestas cidades. A propaganda oficial do TSE sobre as urnas-B tem seguido o mote que seriam "as urnas eletrônicas mais modernas do mundo" desenvolvidas para acabar com o "último reduto da fraude eleitoral", quer dizer, com a possibilidade de um eleitor votar no lugar de outro. Vejam, por exemplo, o texto oficial do TSE: novas urnas eletrônicas, que estão sendo chamadas de urnas biométricas ou, simplificadamente, urnas-B.

Voto Seguro :: IDENTIFICAÇÃO BIOMÉTRICA DO ELEITOR

... merece destaque o desenvolvimento de Urnas Biométricas, que processarão o voto a partir da identificação biométrica do eleitor. A missão da Justiça Eleitoral brasileira é a de colocar nas mãos dos brasileiros o futuro cada vez mais seguro para a democracia e levar o Brasil à vanguarda tecnológica dos processos eleitorais em todo o mundo.

... O objetivo desse cadastramento biométrico é excluir a possibilidade de uma pessoa votar por outra, tornando praticamente impossível a fraude ao procedimento de votação.


Pensando por si próprio

Para não aceitar cegamente a propaganda oficial do plenipotenciário administrador eleitoral deve-se analisar a questão do uso de biometria nas urnas eletrônicas sob três aspectos:

  1. É adequado que um tribunal mantenha um cadastro biométrico dos cidadãos?
  2. É recomendável fazer a identificação digital do eleitor na mesma máquina eletrônica onde o eleitor irá depositar o seu voto?
  3. Se adotada, a biometria de identificação do eleitor resolve as fraudes existentes?

A primeira questão envolve aspectos mais políticos do que tecnológicos e, como a especialidade do autor é a segurança de dados informatizados, não se vai adentrar neste tema mesmo se sendo absolutamente contra ao poder judiciário administrar um cadastro de cidadãos.

A Garantia do Sigilo do Voto

Fora do Brasil, a resposta à pergunta (B), acima, é um sonoro NÃO. Somente aqui se usa — e os eleitores toleram — identificar o eleitor no próprio computador onde se vota. E não se pense que é uma questão de domínio da tecnologia. Toda a tecnologia embutida na fabricação de nossas urnas-B é 100% importada e nem nos países que nos vendem estas tecnologias se usa identificar o eleitor nas próprias máquinas de votar. Quer dizer, o software básico e o hardware de identificação do eleitor vem pronto de fora, mas lá fora eles não se atrevem a conectar biometria com urnas-e. O motivo desta recusa é óbvio: não há como garantir a inviolabilidade do voto contra um software malicioso que for inserido indevidamente nas urnas-e. Assim, para evitar esta possibilidade, toma-se a medida de segurança mais eficaz: não se permite que a identificação e o voto do eleitor estejam simultaneamente disponíveis na mesma máquina. Infelizmente, o brasileiro aceita este risco sem reclamar e o TSE usa fazer a identificação do eleitor nas urnas-e sob um argumento, certamente falacioso, que seria impossível a inserção de software malicioso em seus computadores. A principal consequência negativa da integração entre identificação e votação eletrônicas é o estímulo ao Voto-de-Cabresto-em-Massa, como recentemente posto em prática pelas milícias no Rio de Janeiro

O Eleitor-fantasma Eletrônico

Esta resposta negativa à pergunta (B) é tão forte que nem seria necessário entrar no debate da pergunta (C) para condenar as novas urnas-B que o TSE está adotando. Mas, desobedecendo as recomendações de colegas que também rejeitam a identificação biométrica do eleitor pelos dois primeiros critérios, vamos enfrentar o debate sobre as fraudes eleitorais que a biometria supostamente estaria impedindo. O exemplo citado da propaganda oficial do TSE apenas mostra, mais uma vez, a Justiça Eleitoral apelando para o ufanismo simplório do brasileiro — ...levar o Brasil à vanguarda — para vender a mistificação da tecnologia como panaceia contra todas as fraudes. É um exemplo crasso da Seita do Santo Baite! A tecnologia das fraudes evolui junto (e às vezes antes) com a tecnologia de segurança e é puro engodo esta propaganda de que agora é "praticamente impossível a fraude". Entre as fraudes eleitorais em urnas eletrônicas via identificação falsa do eleitor — o eleitor fantasma eletrônico — duas se destacam por mais frequentes:

  • Os mesários se aproveitam da ausência de eleitores e fiscais e introduzem votos nas urnas-e em nome de eleitores que ainda não compareceram;
  • Pessoas "compram" ou "alugam' o título de um eleitor legítimo e se apresentam no lugar deste para votar.

O Mesário Desonesto

Com relação a primeira destas modalidades de fraude em urnas-e brasileiras — o mesário desonesto — o TSE simplesmente não conseguiu resolver o problema do falso negativo nas urnas-B — quando ela recusa o voto a um eleitor legítimo — e na Resolução TSE 22.713/08 concede ao mesário uma forma de liberar a urna-B para votação por meio de uma senha:


Res. TSE 22.713 - Art. 4º ... VIII - por fim, não havendo o reconhecimento biométrico do eleitor, o presidente da mesa receptora de votos autorizará o eleitor a votar por meio de um código numérico e consignará o fato em ata;"

De posse deste senha — igual para todas as urnas-B —, mesários desonestos simplesmente continuarão podendo votar por eleitores ausentes e, provavelmente, não consignarão o fato em ata! Numa demonstração destas novas urnas-B verificou-se que, para liberar a urna-B sem que o eleitor esteja de fato a sua frente, basta ao mesário digitar repetidas vezes as teclas CANCELA/CONFIRMA do seu micro-terminal quando for solicitado ao eleitor colocar os dedos no sensor ligado à urna-B. Se nas urnas-E normais era possível para um mesário introduzir um voto falso por eleitor ausente em 15 a 20 s, com as urnas-B será possível fazer o mesmo em uns 35 a 40 s.

O Eleitor-fantasma Biométrico

Com relação à segunda modalidade de fraude, comumente chamada de "compra de votos", convém assistir o episódio da série Myth Busters do Discovery Channel onde eles detonam o mito da inviolabilidade da impressão digital biométrica. Com humor eles mostram como conseguem enganar o sistema de reconhecimento biométrico tanto do computador quanto de uma "fechadura biométrica" recorrendo a recursos banais como gelatina balística, filme de látex (cola branca escolar) e até com a impressão digital impressa em papel! Mostram, também, como obtiveram a amostra da impressão digital da pessoa autorizada sem que esta a tivesse fornecido voluntariamente. Além de tentativas de falsificar impressões digitais, outra forma de fraude no cadastro biométrico seria a inserção maliciosa, na base de dados, de comando que libere o cadastramento de pessoas com impressões digitais já cadastradas. Esta modalidade de fraude centralizada, que não seria possível sem as novas urnas-B, atende ao conceito de "centralismo fraudocrático" ironicamente anunciado pelo Prof. Pedro Rezende da UnB. Um exemplo deste tipo de ataque interno ao cadastro biométrico veio a tona com o recente desbaratamento de uma quadrilha que fraudava o cadastro biométrico do DETRAN/SP para burlar a emissão de carteiras de motorista.


Folha Online 04/06/2008 - 18h06 Venda de CNHs derruba corregedor e dois delegados do Detran PAULO TOLEDO PIZA

A Polícia Civil de São Paulo anunciou nesta quarta-feira o afastamento do corregedor do Detran (Departamento Estadual de Trânsito), Francisco Norberto Rocha de Moraes, e outros dois delegados acusados de envolvimento no esquema de venda de CNHs (Carteira Nacional de Habilitação) desmantelado na Operação Carta Branca. ....... A investigação do esquema começou com a Polícia Rodoviária Federal de Mato Grosso do Sul. Os policiais verificaram que diversas ocorrências envolvendo motoristas com carteiras emitidas no Estado de São Paulo eram suspeitas de fraude. Entre os fatores que despertaram a desconfiança de policiais estão CNHs de pessoas analfabetas e deficientes físicos, que não possuíam a carteira para portadores de deficiência.

De acordo com o Ministério Público, essas carteiras eram emitidas sem que houvesse a necessidade da presença física do candidato a condutor. A quadrilha descobriu que o sistema de identificação por impressão digital do Detran (Departamento Estadual de Trânsito) de São Paulo poderia ser fraudado

Além de usar a mesma digital em diversos documentos, a quadrilha também usava dedos de silicone e digitais coletadas em massas de modelar.


A Tinta Indelével

Existem, ainda, outras modalidades de fraudes de identificação menos frequentes que também não serão resolvidas pelas novas urnas-B como a "compra da abstenção" — quando se paga para um eleitor do adversário político não votar, mediante retenção do seu título e do seu RG. Enfim, a biometria só ajuda a atenuar o problema do eleitor fantasma onde mesários e os operadores do cadastro são honestos e os fiscais atentos. Mas, para evitar que eleitores ilegítimos possam votar em seções eleitorais onde os mesários são honestos e os fiscais atentos, não é necessário se recorrer a um caríssimo "maior cadastro biométrico do mundo" que o TSE planeja montar em 10 anos. Bastaria usar a velha "tinta indelével", como se usou recentemente na eleição presidencial do Paraguai e que se usa nos parques Playcenter, para pintar o dedo do eleitor que já votou. Simples, baratíssimo e tão eficaz quanto a parafernália eletrônica. Em países em que se adota a tinta indelével, exibir o dedo pintado depois de votar se tornou um ato de orgulho e prova de cidadania, como mostra a foto abaixo da candidata a presidente no Paraguai em 2008, Blanca Ovelar.

Candidata Presidencial Blanca Ovelar exibe
o dedo pintado confirmando que já votou

Custo da Biometria Eleitoral

Para fazer a coleta dos dados biométricos dos eleitores o TSE desenvolveu computadores especiais, chamados de KitBio, que substituirão a função dos computadores comuns usados atualmente nos cartórios eleitorais.


Kitbio completo com laptop, sensor de digitais, mini-estúdio fotográfico e
 caixa de transporte

Sensor coletor das impressões
 digitais biométricas

Os primeiros 60 KitBio comprados pelo TSE custaram mais de R$ 13.500,00 por unidade. Para implantar o equipamento biométrico em todos os cartórios eleitorais serão comprados quase 10 mil destes KitBio, resultando em mais de R$ 100 milhões. E este não é o custo maior do sistema. Há ainda o custo de adaptar os leitores de impressão digital às 400 mil urnas-e já existentes. Mas muito mais caro que os equipamentos de coletas de dados serão os serviços de batimento, que consiste na conferência on-line das impressões digitais dos eleitores já cadastrados, que teria que ser feita para evitar o cadastro duplo de Eleitores-Fantasmas-Biométricos. Devido ao altíssimo custo do batimento biométrico (protocolo AFIS), o TSE não o porá em prática durante o teste com as urnas biométricas de 2008. Quer dizer, o teste não será capaz de detectar casos de eleitores-fantasmas com cadastro biométrico duplicado!!!

Conclusões

Enfim, analisando sem tecno-fascinação o uso da biometria nas urnas-E brasileiras se constata que este processo:

  • dá a um tribunal a administração de um cadastro de cidadãos;
  • põe em risco a inviolabilidade do voto;
  • dificulta mas não elimina a falsificação de identidade
  • facilita ainda mais o Voto-de-Cabresto-em-Massa;
  • não elimina a fraude do mesário;
  • tem o custo proibitivo a ponto do essencial batimento ser postergado;
  • é rejeitado no resto do mundo

Assim, sob nenhum ângulo que se examine com mais cuidado, como o político, o da segurança e o econômico, se encontra argumentos que justifiquem o enorme gasto que o administrador e justiça eleitoral pretende incorrer com a adoção das urnas-e biométricas que, no resto do mundo, são evitadas e até proibidas.

(*) Amílcar Brunazo Filho, engenheiro, é o Representante Técnico do PDT junto ao TSE e coordenador do Fórum do Voto-E na Internet

Fonte: Voto Seguro.org

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