terça-feira, 5 de março de 2024

A Historia do Narcoterrorismo, da Guerra do Ópio aos Grupos Jihadistas

O narcoterrorismo representa um dos principais desafios para a segurança global e, desde o século XIX, impacta de diferentes formas e proporções em todos os países e regiões do mundo. Neste artigo, o professor do Curso de Experto en Análisis e Investigación de Narcoterrorismo de LISA (Learning Institute of Security Advisors), Raúl González, explica como o narcoterrorismo se desenvolve como uma estrategia híbrida oferecendo exemplos concretos desde as guerras do opio, passando pelas FARC e ETA na década dos sessenta, até como hoje os grupos Hezbolah, ISIS e Hamas tem fortes conexões com grupos delitivos narcotraficantes em toda América Latina.
Narcoterrorismo: uma ameaça permanente
O narcoterrorismo representa um dos principais desafios para a segurança global, pois tem a capacidade de impactar todos os países e regiões do mundo de diferentes formas e proporções, além das consequências que são geradas nos territórios em que essas ações ocorrem.
O narcoterrorismo é considerado uma estratégia de guerra híbrida em que, tanto a violência como a corrupção são utilizadas para atingir um ou mais objetivos. Estes objetivos incluem o controle territorial, o financiamento de atividades terroristas, a desestabilização e a subversão do Estado de direito.
A ligação entre os flagelos do tráfico ilícito de drogas e do terrorismo teve um impacto significativo na comunidade internacional. Esta relação baseia-se na simbiose entre organizações terroristas e grupos criminosos organizados envolvidos no tráfico de droga. As primeiras se beneficiam de enormes recursos provenientes do tráfico ilícito de drogas para financiar as suas atividades e ampliar a sua influência. No caso dos traficantes de droga, estes aproveitam-se da violência e da corrupção para manter o seu poder e expandir-se.
As implicações deste fenômeno são extremamente graves para a segurança internacional. Todas as suas ações têm o potencial de gerar instabilidade política, social e econômica. Pode também transcender os territórios diretamente afetados pela violência gerada, com consequências que vão além da própria ação criminosa.
O seu impacto é tão amplo que os seus efeitos podem mesmo acabar por afetar gravemente as relações diplomáticas entre os países. São capazes de gerar lacunas nas economias em diferentes escalas, causando ou agravando problemas sociais de vários tipos e tornando-se uma fonte inesgotável de violência e corrupção.
Adicionalmente, baseado na tríade do poder econômico dos lucros ilícitos do tráfico de drogas, do impacto das ações terroristas e do tráfico de armas que se combinam com outras ações criminosas organizadas, o narcoterrorismo também promove conflitos de diversas dimensões e é capaz de prolongá-los por longos períodos.
Embora esteja presente na agenda internacional há décadas, a multiplicidade de fatores e variáveis ​​envolvidas (políticas, sociais, culturais e econômicas) têm forte impacto na forma como governos, instituições, organizações internacionais e a sociedade em geral percebem e enfrentam esse problema. Por esta razão, não foi possível desenvolver uma definição de narcoterrorismo que seja globalmente aceita e para a qual se gere uma dinâmica de mudança a uma velocidade muito elevada, no que diz respeito ao seu reconhecimento e tratamento.

¿Qual é a origem do narcoterrorismo?
As origens do narcoterrorismo são incertas. No entanto, apesar das diferenças em relação às guerras do ópio, poderíamos considerá-las como as suas precursoras. Acima de tudo, com base na análise crítica das suas causas, consequências, impacto e elementos característicos.
Ressaltamos, em primeiro lugar, que ambos destacam a complexidade da abordagem deste tipo de conflito. São situações em que convergem a relação entre as drogas e o seu impacto nas dinâmicas políticas, sociais e econômicas. Portanto, acabam afetando gravemente a estabilidade interna dos países e as relações internacionais.
As Guerras do Ópio ocorreram durante o século XIX (entre 1839 e 1860) e tiveram como principais protagonistas a China e o Reino Unido. A introdução de enormes quantidades de ópio (mesmo contrabandeado) na China permitiu ao Reino Unido reduzir o déficit fiscal. Déficit que ocorreu devido à grande demanda por produtos chineses (chá, seda e porcelana), além de gerar recursos para financiar a guerra com a Índia. Por outro lado, o consumo excessivo de ópio pela população foi um fator desestabilizador interno que contribuiu para o enfraquecimento da dinastia chinesa.
Estas guerras tiveram implicações importantes para a geopolítica internacional, afetando em primeira instância as relações entre a Europa e a Ásia. Os efeitos da comercialização do ópio (lícita e ilícita) geraram posteriormente as bases para a implementação do sistema internacional de controle de drogas que é aplicado em todo o mundo. Por outro lado, o narcoterrorismo inclui uma ampla e variada gama de ações criminosas, que têm vindo a desenvolver-se e a evoluir de acordo com as mudanças impostas ao espectro internacional pela Primeira e Segunda Guerras Mundiais.
É assim que vários relatórios oficiais afirmam que, desde meados da década de 1950 do século XX, estratégias não convencionais foram utilizadas pela China e pela União Soviética contra os países ocidentais, que incorporaram o tráfico de drogas como forma de guerra química e fonte de financiamento para movimentos subversivos.

Expansão internacional do narcoterrorismo: das FARC na Colômbia ao ETA na Espanha
A partir da década de 1960, grupos guerrilheiros e subversivos na América Latina começaram a financiar as suas atividades através do narcoterrorismo. Assim, envolveram-se e estabeleceram relações com organizações criminosas dedicadas ao tráfico ilícito de drogas. Estas proporcionaram-lhes proteção em troca de recursos que lhes permitiram avançar nos seus objetivos.
Na década de 1970, as organizações de tráfico de drogas começaram a estabelecer redes internacionais de tráfico de drogas, principalmente de cocaína, para os Estados Unidos e a Europa. Dessa forma, na década de 1980, os grupos guerrilheiros se fortaleceram e se expandiram. Alguns dos exemplos mais notáveis ​​são as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) na Colômbia e o Sendero Luminoso no Peru. Ambas as organizações utilizaram os rendimentos do tráfico de droga para financiar as suas atividades terroristas. Entre eles, destacam-se sequestros, assassinatos, extorsões e outros atos violentos para promover os seus objetivos políticos e econômicos.
Paralelamente, o narcoterrorismo espalhou-se para além da América Latina. Na Europa, os grupos mafiosos usaram a violência e estratégias terroristas para proteger as suas operações de tráfico de drogas. Com isso, buscaram extorquir empresas locais e pressionar os operadores do sistema judiciário.
Na Espanha, organizações como a Euskadi Ta Askatasuna (ETA) tinham a extorsão e outros meios ilegais como principais fontes de financiamento. Além disso, recebiam dinheiro dos narcotraficantes galegos para financiar as suas atividades em troca de proteção e apoio na introdução de grandes quantidades de drogas na zona norte do país ibérico.
Além disso, está amplamente documentado que o ETA assessorou Pablo Escobar, Capo do Cartel de Medellín, na execução de táticas terroristas contra a Colômbia. Tudo isto, no âmbito da luta contra a extradição de traficantes de droga para os Estados Unidos da América. Além disso, ele teve uma ligação comprovada durante muitos anos com a organização narcoterrorista colombiana FARC.

Conexões do narcotráfico com os grupos jihadistas
À medida que as organizações de tráfico de drogas e os grupos guerrilheiros se tornaram mais poderosos e sofisticados, a sua capacidade de influenciar a política e a economia dos seus países de origem também cresceu. Muitos políticos e funcionários públicos foram subornados ou ameaçados por estes grupos, e a corrupção espalhou-se por vários níveis do governo e da sociedade.
A partir de 1990, o narcoterrorismo expandiu-se através da ligação entre organizações terroristas islâmicas e grupos criminosos dedicados ao tráfico de drogas. O Talibã no Afeganistão, por exemplo, envolveu-se no tráfico de ópio para financiar as suas atividades terroristas. Desde os ataques de 11 de Setembro de 2001, estas ligações intensificaram-se. Com isto, outras organizações terroristas como a Al Qaeda (ligada ao Talibã) ou o Estado Islâmico (ISIS), entre outras, apareceram na cena pública.
Atualmente, vários grupos terroristas, incluindo o Hezbollah, o ISIS e o Hamas, têm fortes ligações com grupos criminosos de tráfico de drogas em toda a América Latina. Participam diretamente em atividades ilícitas de tráfico de droga, recebem financiamento para aconselhar traficantes de droga sobre táticas terroristas e trabalham em conjunto noutras atividades ilegais, como a mineração e a exploração de recursos naturais.
Para ilustrar esta última afirmação, vamos nos referir ao caso específico do Hamas. Alguns especialistas afirmam que ele tem ligações comprovadas com o Cartel de Sinaloa, no qual ambas as organizações se beneficiam. O Hamas teria assessorado o Cartel de Sinaloa na construção de túneis na fronteira com os Estados Unidos (de estrutura semelhante aos construídos pelo Hamas para superar as barreiras com Israel em Gaza).
Além disso, o Hamas oferece proteção aos carregamentos de metanfetaminas que atravessam ou têm como destino o Oriente Médio para este Cartel Mexicano, de quem recebe dinheiro do tráfico de drogas para se sustentar e também para financiar ataques terroristas e conflitos como o que ocorre atualmente. na faixa de Gaza.

Outros casos de narcoterrorismo em âmbito internacional
A máfia italiana ainda desempenha um papel no tráfico de drogas na Europa e tem sido acusada de ter ligações com organizações criminosas na América Latina. Mesmo assim, o uso da violência diminuiu (embora continue a ser um vetor de exercício de influência), sendo em grande parte substituído pela dissuasão através da corrupção e da participação na esfera política.
Na América Latina, organizações criminosas dedicadas ao tráfico ilícito de drogas de diversas origens, porte e abrangência; continuam a utilizar táticas terroristas que geram migrações forçadas, desaparecimentos e homicídios. Um exemplo foi o assassinato de um candidato presidencial no Equador ou o de um promotor antidrogas no Paraguai. Os homicídios são comparáveis ​​às ações violentas do passado que chamaram a atenção mundial, como os notórios casos de assassinatos de candidatos presidenciais, ministros e diretores de imprensa na Colômbia, bem como de magistrados na Itália.
As acusações das autoridades dos Estados Unidos da América à China e ao México, de serem os grandes responsáveis ​​pelos problemas que afetam a sua população em diversas cidades devido ao abuso do consumo de fentanil, acusando-os de usarem isso como estratégia para desestabilizar o sistema interno ordem e saúde naquele país; têm também grandes semelhanças com os acontecimentos que levaram às guerras do ópio e que envolveram a China, o Reino Unido e a Índia.
Estas são demonstrações confiáveis ​​das dimensões e do impacto que o narcoterrorismo tem na segurança global, bem como nas relações internacionais, na saúde pública e no comportamento dos mercados econômicos e financeiros. Também destaca o perigo implícito na ação silenciosa mas continuada deste fenômeno.
Fonte: tradução livre do Boletim LISA News
(Learning Institute of Security Advisors)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Via Dolorosa

por Alexandre Garcia
Segunda-feira reabre o Congresso. Ao arrepio da Constituição, que manda reabrir a 2 de fevereiro. Mas quem se importa hoje com a Constituição? Não custa lembrar Thomas Sowell: A Constituição não pode nos proteger se não protegemos a Constituição. Enfim, é um risco que todos corremos, com nossos direitos. No dia 5 reabre o Congresso e o presidente da República vai ver que o duro janeiro vai ser o melhor dos meses deste 2024.
De cara, a Frente Parlamentar Evangélica espera, revoltada, por mais um atrito que o governo criou sem precisar. A despeito do que diz o art. 150 da Constituição, a Receita fez uma interpretação para cobrar imposto dos evangélicos.
Cerca de 300 milhões de reais. Mais uma frente a se unir à bancada do agro e das armas, contra decisões que só afastam o governo dos votos de que precisa no Congresso. Esse ambiente favorece a emenda negociada por Campos Neto, para consolidar a autonomia do Banco Central — o governo quer o Banco Central pendurado na fiscalização do Conselho Monetário.
Janeiro foi cheio de revezes para o governo, embora a propaganda oficial se esforce para mostrar o contrário. O mês começou com o Diário Oficial mostrando a lei do marco temporal, em que 374 derrubaram os vetos do presidente. Se o governo entrar no Supremo, o desgaste vai continuar, e não apenas com a imensa bancada do Agro.
O 8 de janeiro, que era para ser uma festa da Democracia Inabalável, teve as significativas ausências do presidente da Câmara e de 15 governadores.
Dois dias depois, por vontade de Lula, o Brasil aderiu à denúncia de genocídio contra Israel.
O Tribunal Internacional não aceitou e ainda sugeriu que o Hamas deva libertar os reféns. Depois, o New York Times mostrou que funcionários da Agência da ONU em Gaza participaram do massacre de israelenses. O governo do Brasil fica com cara de quem apoia terrorista.
No dia 18, em Pernambuco, Lula reavivou a Refinaria Abreu e Lima, cujo preço se multiplicou várias vezes. O presidente acusou o Departamento de Justiça dos Estados Unidos de prejudicar a Petrobras, provocando mais um atrito.
Anunciou que o Brasil vai tocar a obra mesmo sem o aporte enganoso de Chavez. A isso somou-se à perplexidade do mercado quando o BNDEs anunciou 300 bilhões de reais para ajudar o setor industrial, soando como o velho protecionismo, e derrubou a Bolsa.
Além disso, com a promessa de facilitar licenças ambientais para a Vale, o governo tentou impor Guido Mantega como CEO da Vale, empresa privatizada há 27 anos. O mercado levou um susto e as ações despencaram. O governo não entende que o Previ, com 8,6% das ações da Vale, é dos funcionários do Banco do Brasil, e não do Tesouro.
E antes que janeiro terminasse, saíram os números do Tesouro, com um rombo de 230 bilhões de reais em 2023. A receita subiu 2,12% e os gastos 12,55%. A medida provisória que tenta revogar a decisão de 438 congressistas sobre a prorrogação da desoneração da folha é outro símbolo das fricções que o governo tem provocado.
O Congresso reabre e não vai aceitar a MP. Neste reinício ainda vai vir a reação de deputados e senadores ao veto a mais da metade dos ONZE BILHÕES de reais de emendas, no orçamento deste ano. Emendas já anunciadas pelos autores a seus prefeitos e suas bases.
Não deve ser uma reação branda, mas fisiológica e dura como uma pedra. A via dolorosa de Lula vem sendo pavimentada pelo próprio presidente, não com as pedras da oposição.
Alexandre Garcia é jornalista

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Rede Goebbels de Narrativas

por Percival Puggina
Lendo sobre Goebbels, lembrei-me da conversa pública entre Lula e Nicolás Maduro. Provavelmente, Hitler também recomendava a Goebbels que construísse uma boa narrativa e garantia a seus generais que ela seria melhor do que a narrativa dos que falavam mal dele — ingleses, norte-americanos e demais Aliados. Isto, porém, é mera especulação minha.
Através do trabalho de Goebbels, o Führer influenciou a estética e as expressões artísticas durante o Terceiro Reich, cobrando delas resultado político, ideológico e de afirmação da superioridade ariana. Joseph Goebbels sabia a importância dos meios culturais para a política e os usou para que a sociedade alemã refletisse a doutrina do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Impôs seu projeto ao cinema, ao teatro, à música, às artes plásticas, à arquitetura e à literatura. Com uma das mãos, criou a Casa de Arte Alemã e promoveu a exibição Grande Arte Alemã; com a outra, queimou milhares de obras ditas “degeneradas” porque não cumpriam o dever de espelhar e proclamar a superioridade biológica do mesmo povo que levavam para o abismo da guerra.
É curioso que, apesar da multiplicidade das competências de Goebbels em várias áreas de conhecimento, sua fama reverbere apenas o sujeito que falou sobre a eficácia da mentira contada mil vezes. Merecido epitáfio! De fato, a mentira foi eixo de sua sinistra existência, em cujos atos finais matou a mulher, os seis filhos e a si mesmo.
Enquanto ele se dedicava a tratorar culturalmente a Alemanha de seu tempo (1933 a 1945) para a colheita de Hitler, um grupo de marxistas judeus alemães criava e começava a operar a Escola de Frankfurt (1930). Nela, filósofos e cientistas sociais como Horkheimer, Adorno, Marcuse, Fromm, Benjamin, Pollock desenvolveram ideias anticapitalistas e avessas ao comunismo soviético. Seus trabalhos, nas décadas seguintes, foram usados para atacar pelo lado esquerdo as bases da tradição judaico-cristã. Nas bibliotecas universitárias, as obras desses autores estão, ainda hoje, na altura dos olhos de quem percorre suas prateleiras.
Naqueles mesmos anos trágicos da década de 30 do século passado, Antônio Gramsci escreveu os famosos “Cadernos do Cárcere” (1929-1939) na casa de reclusão de Turi onde cumpriu pena até dois dias antes de morrer. Suas anotações revolucionaram as estratégias comunistas, mostrando como a manipulação dos meios culturais permitiria estabelecer a hegemonia de “uma nova forma de consciência” e capturar a ordem política nas sociedades capitalistas. Há 90 anos, portanto, o pensamento revolucionário, totalitário e desumano, já conhecia a importância política da cultura.
Em 1933, a Escola de Frankfurt, fugindo da perseguição nazista, migrou para os Estados Unidos. Certamente por isso aquele país disponibiliza o maior arsenal bélico à guerra cultural contra si mesmo e contra o Ocidente. “Mas e o Brasil?”, perguntará o leitor. Como tenho repetido, a esquerda brasileira “copia, traduz e cola”. Copia do idioma inglês as receitas para desagregação da sociedade e demolição do Ocidente, traduz para o português pelo Google Translator e cola em seus estudos, cartilhas e bibliografias. Serve-se, pois, do mesmo arsenal norte-americano e com ele orienta a produção das narrativas feitas sob medida para a realidade brasileira. Por isso, na falta de mato para carpir, Lula pode dar “aula de narrativas” a Nicolás Maduro.
A insurreição cultural em curso tem gerado no Brasil uma decadência dos padrões de convívio social. Parte essencial de sua estratégia inclui exatamente o combate à beleza, à verdade e às virtudes. Ela exige a degradação do ser humano até sua desumanização, incluindo a bandidolatria, o aborto, a cristofobia, o desamor à pátria, o relativismo moral, a liberação das drogas, etc. Pessoas das quais não se poderia esperar um compromisso com a mistificação repetem narrativas fraudulentas por condicionamento “da nova consciência” imposto pela repetição.
O advento das redes sociais, caóticas por natureza, rompeu a hegemonia da comunicação que se estabelecera no Brasil. Isso criou problemas para a dominação cultural esquerdista que seguia os velhos ensinamentos da Escola de Frankfurt, dos Cadernos do Cárcere e das ações com que Goebbels implantou o conjunto ideológico do nazismo na cultura do povo alemão. Todo o empenho em “regulamentar as redes sociais” quer, mesmo, impor a elas um silenciador, minimizando seu impacto.
A oligarquia que retomou o poder no Brasil depende, fundamentalmente, da Rede Goebbels de narrativas. Ela faz o trabalho cotidiano de bate-bate na mesma tecla que ficaria enfadonho e insuficiente se assumido pelos oligarcas em suas manifestações. Na prática, eles constroem as versões e a Rede, com habilidade e boa técnica, repete em escala nacional não mil, mas milhões de vezes, há décadas, as ideias e narrativas esquerdistas, frankfurtianas e gramscianas, prendendo-nos a um passado tão perverso quanto corrupto.
Os males que disseminam não proporcionam, porém, fundamento estável ao êxito que, por enquanto, comemoram.
Percival Puggina (79) é arquiteto, empresário, e escritor.

domingo, 31 de dezembro de 2023

domingo, 24 de dezembro de 2023

Feliz Natal e um Novo Ano com Felicidades

 

Que neste dia em que comemoramos o nascimento daquele que veio para nos ensinar o bom convívio, consigamos colocar em prática os ensinamentos que Ele nos deixou.
Feliz Natal a todos, e que o Ano Novo de 2024, seja realmente Novo.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Ilus Fagundes Ourique Moreira — Centenário de um Líder

Na data de hoje, se vivo fosse, estaria sendo comemorado o centenário do Coronel de Cavalaria Ilus Fagundes Ourique Moreira, nascido em 24 de novembro de 1923 e falecido em 04 de maio de 2002.
Como Tenente-Coronel, ele Comandou o então 2º RRecMec (2º Regimento de Reconhecimento Mecanizado)  de 08 Jul 1969 a 16 Jan 1972, merecendo uma referência especial quanto ao período em que esteve à frente daquela Organização Militar. Comandante exemplar, não comandou, divertiu-se por três anos fazendo o que gostava.
Era idolatrado pelos Soldados. Entre Oficiais e Sargentos havia restrições porque o expediente só encerrava quando TODAS as viaturas utilizadas nos exercícios diários estivessem limpas e recolhidas às garagens.
Sobre sua mesa, no Gabinete de Comando, onde raramente era encontrado por preferir circular pela Unidade, havia uma grande foto do corpo trucidado do Tenente Alberto Mendes Júnior — Oficial da PMSP assassinado em 1970 —, para que ele jamais se esquecesse da missão que se impôs: caçar o desertor Carlos Lamarca e sua quadrilha.
Segundo um sobrinho dele, também Oficial de Cavalaria, o Coronel Ilus foi especialista em treinamentos de combate anti-guerrilha.
Certa vez, recebeu a missão de deter um sujeito acusado de terrorismo, para maiores esclarecimentos. Vestido de padre, para fazer a aproximação ao procurado, levava uma Bíblia na mão, com as páginas recortadas, de modo a caber a pistola .45 dentro. Ele se fazia de padre cego e o sobrinho o conduzia pelo braço como se fosse um sacristão, também com uma Colt sob a batina. Pegaram o sujeito sem maiores problemas.

a. A criação dos PELOPES
No começo de 1970, aproveitou a chegada, ao Regimento que comandava, de dois Aspirantes da AMAN, Ruy e Fleury, ambos Paraquedistas, um com o curso de Comandos, e o outro de Guerra na Selva; e lhes deu a missão de organizar, com seus pelotões, dois Pelotões de Operações Especiais (PelOpEs), um no Primeiro e o outro no Segundo Esquadrão.
Os PelOpEs treinavam na granja do Regimento, local hoje ocupado pelo 3ºBComEx (3º Batalhão de Comunicações do Exército), onde foi criado um pequeno local de instrução especial, com Pista de Reação composta por uma pista de cordas completa, em uma trilha com diversos tipos de obstáculos e armadilhas. Quando prontas as pistas, já em condições de iniciar as instruções, o Comandante perguntou se haviam testado tudo. Recebendo a resposta positiva, foi verificar e testar toda a pista, realizando a passagem por todos os obstáculos.

b. O treinamento diário da tropa
Era comum, antecedendo a Formatura Diária do Regimento, a saída de um ou dois Pelotões que tinham por missão instalar-se no terreno onde, mais tarde algum dos Esquadrões faria exercícios de atividades características de Cavalaria — Reconhecimento de Eixo, Área ou Zona; Segurança Interna, Ações Contraguerrilha, etc.
Um CCL M3A1 Stuart, em exercício. Imagem: Foto - coleção de Ricardo Fann
Os Comandantes de Pelotão evitavam ao máximo realizar exercícios próximos a banhados ou áreas alagadas pois, inopinadamente, o Comandante do Regimento ia verificar como estavam se desenvolvendo as atividades. E, se houvesse um banhado por perto, era certa a determinação para que um carro de combate — na época o Regimento dispunha dos Carros de Combate Leve M3A1, conhecidos como "Pererecas" — fosse encaminhado para o banhado até atolar. Daí em diante, o Comandante se divertia escalando Cabos e Soldados para desatolarem a viatura (na época, praticamente todos os militares da OM tinham conhecimentos básicos para manobrar, não só as "Pererecas", mas TODAS as viaturas operacionais do Regimento). Quando já ninguém tinha esperanças de que a viatura fosse desatolada sem o auxílio do "Brucutu" — apelido do enorme guincho existente na 2ª CiaMéMnt (2ª Companhia Média de Manutenção), então vizinha do Regimento —, o Comandante jogava fora o charuto que permanentemente fumava, entrava no barro e dirigia o M3A1 para fora do lamaçal. Contam que somente em umas duas ou três vezes foi necessário chamar o "Brucutu" para desatolar um carro de combate do Regimento.

c. A "charanga" do Regimento
Ao assumir o comando, constatou que no Regimento só havia um bumbo, um tarol e três clarins para estimular o Regimento nas formaturas. Determinou, então, que se buscassem militares da Unidade que tivessem algum conhecimento musical, para fazerem parte da banda, e obtiveram mais um Cabo e seis Soldados para reforçar a "fanfarra" da Unidade. Logo, apareceu um Cabo que tocava pistom e clarim, além de estudar música. Isso elevou o nível da pequena banda. Com vários instrumentos adquiridos, a fanfarra chegou ao total de 25 componentes, passando a participar da  Parada Diária, com o pessoal que entrava de serviço. O sucesso da fanfarra fez com que passasse a se apresentar em Colégios, Festas de Igreja, e até no Hospital Militar de Porto Alegre.

d. A recuperação "impossível" de um Carro de Combate acidentado 
As viaturas de dotação do Regimento eram, além das cerca de três dezenas de CCL M3A1 — os "tanques" com treze toneladas de peso —; os blindados de transporte de tropa (meia-lagartas e "Scout-Car"), as viaturas anfíbias e os jeeps comuns, mais os veículos administrativos.
O Comandante do Regimento se orgulhava de que, nas comemorações do Dia da Independência, todas as viaturas de sua Unidade participassem do desfile.
Os carros de combate do Regimento, eram de um modelo que fizera sucesso nos desertos no norte da África durante a II Guerra Mundial, por sua capacidade de manobra — maior velocidade e facilidade de mudança de direção —, que dificultava seu enquadramento pelos artilheiros alemães.
Tratava-se de um veículo que dava muito prazer a quem o dirigia — apesar do ruído infernal em seu interior. Na década de 1970, não havia problemas com fornecimento de combustível para os veículos e era muito comum a saída deles para fazer "testes de pista" em ambiente externo, mais como treinamento dos motoristas do que por necessidade de "verificação".
O Comandante incentivava que todos os militares da Unidade soubessem, pelo menos, manobrar todos os tipos de viaturas operacionais orgânicas.
Em meados do mês de agosto, começavam os treinos para o desfile de 7 de Setembro; e em um desfile de treinamento, um Sargento que não era oficialmente habilitado para dirigir os CCL provocou um acidente que danificou o sistema de tração da "perereca" que conduzia.
De volta ao quartel, o Sargento dirigiu-se ao Comandante para relatar o ocorrido e a resposta foi simples, concisa e precisa, ao estilo da Cavalaria: há um problema e devemos resolvê-lo em curto tempo; você é responsável pelo desfile dessa viatura no próximo 7 de setembro. A questão disciplinar, veremos no dia 8.
A mensagem foi muito bem compreendida e o Sargento iniciou a desmontagem da frente do carro de combate para verificar a extensão do dano. Trata-se de uma blindagem com espessura de cerca de duas polegadas de aço, presa por dezenas de parafusos.
Praticamente todo o efetivo da Oficina Regimental uniu-se no trabalho, para ajudar o colega que era muito estimado por todos. Aberta a frente do veículo, foi verificado o problema. As esteiras do CCL eram tracionadas por polias dianteiras e o conjunto mecânico de tração era protegido, sob a blindagem, por um bloco de antimônio.
E um dos braços desse bloco simplesmente havia trincado com a pancada sofrida. Obviamente, esse tipo de bloco não é de fácil reposição; e o antimônio é um metal de dificílima soldagem.
Felizmente, em contato com um grande empresário da cidade, este se dispôs a paralisar os trabalhos de sua empresa — Metalúrgica Gerdau — para realizar o trabalho usando o seu equipamento de usinagem com a devida assessoria técnica.
O reparo na peça ficou perfeito e, o mais importante, completamente gratuito. Novo mutirão de mão-de-obra voluntária de 24 horas diárias para recolocar o conjunto de tração e a blindagem em seu lugar.
Na manhã do dia 5 (ou 6) de setembro, o Sargento estacionou CCL recuperado em frente ao Pavilhão Administrativo do quartel — depois de realizar diversos testes no terreno — e foi apresentar-se ao Comandante.
Este o parabenizou pelo trabalho realizado e pela capacidade de gerar a enorme solidariedade entre seus companheiros, que possibilitou a realização daquele tarefa em tempo inacreditável. E o CCL desfilou com as demais viaturas no Desfile do Dia da Independência.

e. A estreia do uso da Boina Preta no Exército Brasileiro
Em 1971, o Comandante decidiu que o Regimento desfilaria usando boina preta no 7 de Setembro, seguindo a tradição mundial de diversas tropas blindadas. 
Usando recursos próprios da OM (granja, aluguel do campo de futebol, etc.) mandou medir a cabeça de todos da Unidade e confeccionar as novas coberturas de gala. Os Soldados amaram a ideia. 
Já próximo à data do Desfile da Independência, o Escalão Superior (Comando do III Exército) foi avisado da novidade e, naturalmente, vetou a iniciativa, pois boinas pretas não faziam parte dos uniformes regulamentares do EB.
O Cavalariano não se abalou e repetiu (em outro episódio, já dissera isso ao Quatro-Estrelas) que quem mandava no Regimento era ele. E o 2ºRRecMec desfilou com sua tropa orgulhosamente usando boina preta no 7 de setembro de 1971.
Diz a lenda que isso foi o último prego no caixão de sua promoção ao Generalato. Mas o editor guarda com muito carinho a foto com boina preta, sabedor de que aquele desfile da Unidade — que, depois, receberia o nome histórico de "Regimento Marechal José Pessoa"  no Dia da Independência de 1971, inaugurava o uso da peça que hoje orgulha as tropas blindadas brasileiras.

f. Treinamento em Itapuã
Ainda em 1971, o Regimento foi responsável por um treinamento antiterrorismo, sigiloso, para pessoal que não era da Unidade.
Os trabalhos foram executados na região em que atualmente existe a Reserva Ecológica de Itapuã, bem ao sul de Porto Alegre, já no município de Viamão. Foi escalada uma equipe para estabelecer a segurança da área de instrução, particularmente na trilha que dava acesso à Praia de Fora, local das instruções. Era uma tarefa sigilosa. Nada do que ocorreu foi relatado no quartel, mesmo sob a pressão dos Comandantes de Esquadrão.
Na área, durante o dia, os Soldados só ouviam os ruídos. Muitas explosões e tiros. Ao entardecer, os Instrutores e Instruendos retornavam à cidade e a equipe de segurança se acomodava em uma das barracas militares. Em outras, ficava o material: alvos diversos, armas diferentes das que eram usualmente usadas, e os cunhetes com explosivos e munições. O próprio Comandante autorizou que a equipe instalasse alvos e treinasse atirando com os mosquetões e pistolas. Pela manhã, chegava com pacotes de cigarros de presente para a "guarda".
Alguns fatos marcaram o treino: um foi o acidente com uma espoleta, que feriu um dos Instruendos. Ele foi levado ao Pronto Socorro. O problema de explicar o ocorrido, sem revelar a operação de instrução nem a identidade do ferido, foi contornado pela explicação de que se tratava de um mendigo que circulava no acampamento militar em busca de sobras de ração militar, e havia se aproximado de um artefato que explodira. O oficial que havia levado o ferido ao hospital percebeu o olhar de espanto do médico atendente ao ver um anel de graduação do dedo do "mendigo" ferido. O médico pode ter se espantado, mas não ousou questionar o relato.
Outro incidente foi um temporal noturno cuja ventania ameaçava carregar as barracas de lona. Foi uma trabalheira enorme desmontar as barracas e transportar o material mais sujeito a dano pela umidade, para um dos caminhões que permaneciam no local, para suprir alguma necessidade de transporte de emergência. Dormir na carroceria do caminhão, sobre a carga, não foi uma tarefa fácil.
Também ficou na memória um pequeno passeio pela região, acompanhando o Comandante. Em certo momento, uma perdiz alçou seu voo barulhento, e o Tenente-Coronel Ilus, instintivamente, sacou sua pistola e abateu a ave. Completou dizendo para o Soldado Leite, um dos que o acompanhavam: "Vá buscar e não desperdice! Não é todo dia que se pode comer perdiz abatida com 45.".
Ninguém saberia dizer se foi boa pontaria ou sorte do atirador.

g. O atraso do General e a chuva
O General Comandante do então III Exército — hoje Comando Militar do Sul — agendou uma visita ao 2ºRRecMec. Selecionado o efetivo de um Esquadrão para fazer a Guarda de Honra para recepcionar a autoridade, passam alguns dias de treinamento para que não houvesse nenhum contratempo.
Na data aprazada, 07:30 horas, a Guarda de Honra forma ao longo da Av Orleans para receber o Comandante das tropas do Exército de toda a região Sul — Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul —, que deveria chegar às 08:00 horas.
Por seu porte físico, este redator foi escalado para fazer parte da Guarda da Bandeira, grupo destacado que guarnece o deslocamento de um Oficial conduzindo o Pavilhão Nacional nos desfiles.
Por volta das 08:00 horas, cai uma chuvarada e nada do General. Este chega cerca de meia hora depois. Desce da viatura oficial e empertiga-se para receber as honras militares devidas. Toque de clarim, continência coletiva, e o Comandante do Regimento faz a apresentação regulamentar da tropa: "Tenente-Coronel Ilus, apresento-vos a tropa do 2ºRRecMec em forma, pronta". Até aí, tudo bem. E continuaria bem, se o Ten Cel Ilus não tivesse acrescido um adendo à sua apresentação: 
— "se Vossa Excelência tivesse chegado no horário previsto, ou mandasse avisar que iria se atrasar, minha tropa não tomaria um banho desnecessariamente!"
Isto foi dito em alto e bom som — o pessoal da Guarda da Bandeira, em frente a qual acontecia aquilo, ficou estupefato. O General escancarou os olhos, não acreditando no que acabara de ouvir, e só conseguiu balbuciar um tímido pedido de desculpas. E a revista à tropa prosseguiu.

h. As apresentações do Cascavel e do Urutu
O Carro de Combate Sobre Rodas, precursor do EE-9-Cascavel estava, ainda, em sua fase de construção e um protótipo, com canhão 37mm, além de um exemplar do futuro Carro de Transporte de Tropa (Urutu) chegaram ao Regimento, trazido por um Coronel e equipe da Engesa (empresa fabricante). Tratava-se do irmão do Comandante do Regimento, Cel Argos Fagundes Ourique Moreira, Engenheiro Militar, depois General  cujo nome hoje é ostentado como denominação histórica pelo 8º Batalhão Logístico, de Porto Alegre e pelo Centro Tecnológico do Exército, no Rio de Janeiro, do qual foi o primeiro Chefe.
O Ten-Cel Ilus, acompanhou a visita e as demonstrações da nova viatura. Feitas as exibições previstas, no pátio de formaturas da Unidade, o Coronel convidou seu irmão para que os protótipos mostrassem seu desempenho na "pista de provas" da OM — localizada onde hoje se situa o “Parque Residencial Dr Ernesto Di Primio Beck”. Terreno limitado, grosso modo, pelas Avenidas da Serraria, Araranguá e Orleans — onde havia diversos tipos de obstáculos, que era usado na formação dos motoristas do Regimento. Posteriormente, as viaturas experimentais foram levadas até a área do Pontal das Desertas, onde hoje existe a Reserva Florestal de Itapuã, como parte de sua apresentação.
Os protótipos das novas viaturas blindadas não tiveram um desempenho considerado bom pelo Ten-Cel Ilus, que troçava o irmão mais antigo, afirmando que sempre confiaria mais nas "Pererecas" do que naquele "trambolho" sobre rodas.

i. A "fuga" dos terroristas presos
As notícias sobre os crimes cometidos por terroristas membros das diversas quadrilhas que pretendiam implantar uma ditadura comunista no Brasil eram comuns. A capital gaúcha não era tão afetada quanto os grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo, mas houve casos de assaltos a bancos, restaurantes de luxo, tentativa de sequestro do cônsul norte-americano e outros atos aproveitando exatamente o fato de Porto Alegre ser uma das cidades mais discretas no conjunto das capitais. Isto não era tranquilizador. Pelo contrário. Vivia-se a expectativa de que a onda de atentados fosse se afastando do centro do país e migrasse para locais mais calmos. E a tensão dessa expectativa refletia-se na instrução dos militares em geral, até mesmo dos recrutas.
O treinamento para o combate convencional era intenso, mas sempre eram inseridos ensinamentos colhidos sobre guerra irregular, de guerrilhas. As lições aprendidas na guerra do Vietnã, sobre armadilhas, ações de sabotagens e emboscadas da guerrilha eram rapidamente difundidas nos quarteis.
Ficou na memória de muitos a recomendação que um Tenente costumava fazer em suas recomendações ao pessoal da guarda, quando ele estava escalado de serviço: "se algum invasor entrar aqui e conseguir fugir, é bom que os sobreviventes da guarda fujam junto, porque os que eu encontrar, eu mato!"
Pois nesse ambiente pesado, um pequeno grupo de Aspirantes-a-Oficial Temporário se apresentou na Unidade para o Estágio prático. No mesmo dia, um deles foi "escalado" como Auxiliar do Oficial de Dia. 
As instruções do serviço começam e ele assiste o Oficial-de-Dia realizar a inspeção na cela de um dos prisioneiros que cumpria pena no quartel, não sem antes ouvir uma preleção sobre a periculosidade dos encarcerados, condenados por terrorismo. O Tenente efetua a revista pessoal no preso e em seus pertences.
E seguem para a outra cela, onde há dois presos. Eles se posicionam com as mãos na parede na posição para serem inspecionados e o Tenente manda que o Aspirante execute o procedimento que assistiu no xadrez anterior.
O inexperiente jovem começa a verificação em um dos reclusos, mas é rapidamente subjugado pelos cativos, que lhe tomam a pistola que portava e o ameaçam com ela. Os bandidos exigem que lhes entreguem um automóvel para a fuga, ameaçando matar o jovem Aspirante na frente de todos. A gritaria e a balbúrdia se instalam. A guarda não reage para não instigar a iminente execução do jovem aprisionado, que ainda tenta ser valente e grita para que não atendam os bandidos.
Toma uma pancada na cabeça com a pistola e a valentia acaba. Um sedã VW é trazido e os três embarcam. O condenado ao volante arranca rapidamente e toma o rumo da "pista de provas", área de instrução em frente ao quartel, onde "desovam" seu prisioneiro, que volta apavorado para o quartel. No Corpo da Guarda, oficiais e sargentos aguardavam e o encaminharam ao Comandante, para que explicasse como havia facilitado a fuga dos dois criminosos mais perigosos da época. Aquele terror todo durou o resto da manhã, até que revelaram ao grupo de Aspirantes que tudo não havia passado de um "trote" aplicado ao grupo.
Os dois "fugitivos" eram os Tenentes Rui e Fleury. Os outros presos, realmente condenados, já não representavam risco de fuga por já terem reconhecido seu arrependimento pelos erros cometidos e estarem em busca de diminuição de suas penas pelo bom comportamento.
Cabe destacar que, fosse em uma situação real, os presos provavelmente teriam sido fuzilados ainda no Corpo da Guarda, mesmo com o risco do Aspirante refém sofrer algum efeito colateral.

Após deixar o Comando da Unidade, o Coronel Ilus permaneceu em Porto Alegre, indo servir no QG do III Exército. Gostava de visitar o "seu" Regimento. Ia lá almoçar e participar das marchas a pé. As realizava, armado e equipado, deslocando-se à frente da tropa, com o capacete de aço debaixo do braço.
Outros fatos poderiam ser relatados, todavia devem permanecer somente na memória dos envolvidos. Nenhum deles que desmereça a memória do Cel Ilus.
Poucas vezes voltei a encontrar meu Comandante e amigo, uma delas, em 1974, no QG do III Exército, quando fui me aconselhar a respeito da promoção à graduação de Cabo, frustrada por uma decisão questionável do então Comandante da Unidade — dele ouvi uma sábia lição: o Exército, com seus Regulamentos, se é uma Instituição que beira a perfeição, mas é composto por pessoas e estas são sujeitas a falhas. O último contato que tivemos foi no final da década de 1980 quando, já Sargento, fui visitá-lo no escritório da Engesa, em que ele, na Reserva, trabalhava; em um prédio na esquina da Av. Borges de Medeiros com a Rua dos Andradas no centro de Porto Alegre.

Um dia (04 Maio 2002), se foi esse que foi tido como profissional exemplar. Nas palavras de seu sobrinho: em solitária e pacífica morte súbita, na abençoada morte rápida, tomando banho. Morreu, fazendo da morte uma surpresa. Coisa bem típica de Cavalaria, pegando todo mundo "pelo flanco".

Alguns dias antes do seu falecimento, telefonara para o sobrinho, também Oficial de Cavalaria. Já idoso e viúvo, disse que tinha algumas armas em casa e gostava de treinar atirando com arma de pressão, dentro da própria residência, em alvos que montava no corredor do imóvel.
Um grande exemplo de militar que soube guardar e seguir as tradições do Marechal Osório.

Antônio João Ribeiro — 200 anos

por José Antônio Lemos dos Santos
Não se trata de exaltar as guerras em episódios ou personagens especiais, mas de celebrar um herói. Heróis existem em cada lado de qualquer contenda ou disputa, assim como covardes ou traidores, a depender do lado por onde são vistos. Herói é aquele que promove ou defende a todo custo, inclusive pessoais, os valores primordiais de seu povo em todas as áreas da ação humana. Em suma, existem heróis nos esportes, na cultura popular, na saúde, na arquitetura, na política, e até nas guerras, embora estas não devessem acontecer, mas aconteçam. Covardes ou traidores são o contrário dos heróis.
Quero falar sobre Antonio João Ribeiro, hoje quase desconhecido, mas um herói brasileiro que defendeu seu país a preço da própria vida em um dos episódios mais dramáticos da Guerra da Tríplice Aliança. Nascido em Poconé (MT) em 24 de novembro de 1823, morreu em Mato Grosso do Sul, na região onde hoje é o município de Antonio João, que o homenageia com seu nome. Neste ano de 2023 são completos exatos 200 anos de seu nascimento e este é o principal motivo deste artigo.
Seu drama ocorreu quando comandava a Colônia Militar de Dourados com uma guarnição de 14 soldados, mais cinco colonos — quatro homens e uma mulher — tendo que enfrentar um cerco de 365 adversários mais equipados. Rejeitou com altivez o ultimato do inimigo para render-se, não fugindo ao embate desigual. Antes do embate enviou mensageiro ao comando superior com sua decisão de defender aquela posição brasileira, ainda que a preço da própria vida. Não se escondeu em gabinetes e foi para a linha de frente onde morreram ele, dois soldados e mais dois colonos. Os demais foram dominados.
A mensagem enviada foi interceptada pelos inimigos. Tão eloquente era o seu texto que mesmo próximo do enfrentamento em luta sangrenta, ficou gravada mesmo na memória dos adversários que a leram, saltando de um texto em um papel dado como extraviado para a história das grandes epopeias brasileiras. Os bravos reconhecem seus iguais e se respeitam mesmo estando em lados opostos.
E assim foi.
Em 1980 o Exército Brasileiro consagrou o Tenente Antônio João Ribeiro como um de seus Patronos e construiu na Praia Vermelha, onde se encontram dois dos mais importantes centros de formação militar do Brasil — a Escola de Comando e Estado Maior do Exército e o Instituto Militar de Engenharia — um monumento em homenagem aos combatentes da Guerra do Paraguai tendo em posição de destaque a figura do ilustre mato-grossense e sul-matogrossense, o poconeano Tenente Antonio João Ribeiro representado no momento em que seu corpo se curva para trás alvejado de morte.
A mensagem enviada a seus superiores e interceptada pelos adversários, era pequena no tamanho e grande no significado. Segundo o site do Exército Brasileiro ela extravasava o inarredável sentimento do dever militar, expresso nas poucas palavras ali colocadas pelo bravo tenente: Sei que morro, mas o meu sangue e o de meus companheiros servirá de protesto solene contra a invasão do solo de minha Pátria”. Vai, de fato, para além do dever militar firmando-se na linguagem cívica brasileira como expressão simbólica da afeição extrema da cidadania pelo seu berço pátrio diante de quaisquer tipos de ameaças que sobre ele paire.
* O autor é arquiteto e urbanista, e professor aposentado.

domingo, 19 de novembro de 2023

Dia da Bandeira Nacional Brasileira

Foto de Ronaldo Bernardi / Jornal Zero Hora

Apesar de todos os desgostos provocados por alguns que te tocam, és uma das formas de representação de nossa sofrida Nação.
Tuas cores alegres representam, principalmente, a esperança de que este povo, um dia, encontre o rumo certo.
E o carinho que te é dedicado pelas crianças prenuncia que um dia este país terá pessoas responsáveis em seu comando, voltando a ser respeitado e ocupando o lugar que lhe compete no concerto internacional.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Ponto Sem Retorno ou Pontes Queimadas

Agitaram-se as nações, vacilaram os reinos; apenas ressoou sua voz, tremeu a terra. Está conosco o Senhor dos Exércitos, nosso protetor é o Deus de Jacó.
(Salmo 45: 7-8)

por Joanisval Gonçalves
Nesta noite de domingo, passadas cerca de 48 horas dos ataques do Hamas a Israel, e após muito ver, refletir e orar, decidi trazer para Frumentarius minhas primeiras impressões disso tudo. Serão breves e objetivas. Vamos a elas.
Se houvesse um único termo para definir toda essa terrível crise é “sem precedentes”. Sim, Israel sofreu um ataque sem precedentes em sua história de 75 anos de conflitos. Além dos já “costumeiros” ataques com foguetes (contra os quais o Domo de Ferro garantia proteção), e diferentemente de tudo que acontecera antes, o Hamas atacou por terra: os “combatentes” da organização (terroristas sim, sem qualquer sombra de dúvida) avançaram contra populações civis dentro do território israelense. Massacraram homens, mulheres, crianças e idosos indistintamente, centenas de pessoas trucidadas em alguns poucos minutos (nunca o Hamas havia causado tantas baixas à população Israel). De fato, o que perpetraram sem qualquer pudor contra os civis israelenses me remonta ao que os nazistas fizeram com populações que pretendiam exterminar há mais de oito décadas — a maioria das vítimas, judeus.
Também sem precedentes foram as dezenas de pessoas tomadas como reféns pelo Hamas. No conflito com os palestinos, já houve cidadãos israelenses cativos, mas nunca nesse número tão significativo. E, na era das redes sociais e dos smartphones, o mundo já assistiu chocado a imagens de famílias executadas em suas casas enquanto comiam, de moças sendo forçadas a entrar em caminhonetes, à idosa ao lado de seu algoz com um fuzil no colo e fazendo um “v” com a mão (o que evidencia algum problema de senilidade da pobre senhora, a qual autoridades norte-americanas já teriam dito ser sobrevivente do Holocausto), ou ao vídeo aterrador de crianças pequenas dentro de gaiolas/jaulas sob a risada debochada dos facínoras que as capturaram. Esses registros de brutalidades contra civis aumentam a cada hora, e se mostram cada vez mais aterradores. Nada, absolutamente nada, justifica semelhantes ações, e aqueles que as cometeram fizeram com que sua causa perdesse qualquer legitimidade.
Os ataques diretos a guarnições israelenses, com a execução fria de soldados e tomadas de oficiais (alguns de alta patente) como reféns também surpreenderam. Até ontem, quando um soldado israelense era capturado pelos palestinos, todos os protocolos de segurança do Estado de Israel eram alterados, e o país entrava em alerta máximo. Nesse sábado, repito, foram dezenas de soldados capturados — dificilmente serão tratados como “prisioneiros de guerra”. Some-se a isso cenas de blindados israelenses sendo destruídos por mísseis (não me pareceram foguetes, mas não sou especialista) e de tripulações sendo arrancadas de seus carros de combate e trucidadas, com seus corpos jogados ao chão e vilipendiados. E tudo isso sendo gravado e transmitido em tempo real para o mundo.
Sim, o ataque do Hamas a Israel neste sábado, 7 de outubro de 2023, exatos 50 anos após o início da ofensiva que desencadeou a Guerra do Yom Kippur, foi algo sem precedentes. E a organização demonstrou capacidade operacional, planejamento, coordenação e controle também sem precedentes. Evidenciou um poder de fogo quase que inimaginável. E conseguiu causar danos a Israel e à sua população de intensidade e profundidade como nunca acontecera antes.
Sem precedentes também será a resposta de Israel. O país foi “jogado nas cordas”, e ainda se recupera para reagir. Mas reagirá. O Leão mostrará sua força, e atacará como nunca se viu. Os israelenses, unidos, não medirão esforços para vingar suas vítimas e aniquilar o cruel inimigo. Infelizmente, como aconteceu com a população do sul de Israel, milhares de palestinos inocentes em Gaza também sofrerão as consequências dos contra-ataques israelenses. Não me surpreenderia que se fizesse ali o que Roma vez com Cartago ao final da 3ª Guerra Púnica. Vae victis!
Israel não vai descansar até vingar seus mortos, feridos e sequestrados, e acabar com a existência do Hamas. Não lhe resta outra opção. Não à toa, Tel Aviv declarou estado de guerra. Se não reagir à altura, quem deixará de existir será a nação judaica.
Ao desencadear a operação desse sábado, o Hamas selou seu destino. Não deixou alternativa ao “inimigo”, pois o atacou naquilo que tinha de mais precioso. Também reiterou o que sempre pregara como seu maior objetivo: a extinção de Israel e da nação judaica — em outras palavras, o genocídio do povo judeu (posicionamento bem distinto do que prega a Autoridade Nacional Palestina, a qual governa a Cisjordânia e defende a criação de um Estado palestino livre e soberano).
O Hamas queimou as pontes, como se diz no jargão dos que estudam polemologia. As ações desencadeadas ontem levaram a um ponto sem volta (point of no return). E se isso se aplica para o Hamas, também cabe para a resposta que Israel terá que dar contra os terroristas e contra a Faixa de Gaza e os dois milhões de palestinos que ali vivem em condições dificílimas. Qualquer reação israelense, repito, que não seja dura, firme e efetiva, implicará em demonstração de fraqueza e sinalizará a possibilidade de colapso iminente do Estado de Israel perante os antagonistas que o cercam.
Talvez escreva nos próximos dias sobre o que vislumbro da reação israelense. A possibilidade dessa resposta envolver alvos além do Hamas não deve ser negligenciada, sobretudo se outros atores, não-estatais (como o Hesbollah) ou estatais (certos países do Oriente Médio, por exemplo), estiverem envolvidos no planejamento e na execução dos ataques iniciados ontem ou vierem a apoiar os palestinos. Nesse caso, o risco de o conflito escalar é alto, inclusive com o recurso de Tel Aviv a seu armamento não-convencional — aí se terá também um conflito verdadeiramente sem precedentes.
O mundo mudou muito (infelizmente para pior) desde sábado, 7 de outubro de 2023. Quero realmente estar enganado, mas as pontes parecem já ter sido queimadas entre as partes diretamente envolvidas no conflito. Talvez ainda não se tenha chegado ao ponto sem volta no que diz respeito à escalada da guerra, mas acredito que se está muito próximo dele.
Ontem à noite, conversando com uma amiga judia muito querida, ela me disse que há certas derrotas que têm gosto de vitória, mas na guerra até o vitorioso sai derrotado. Impossível discordar dessa afirmação. Espero ter errado em minhas reflexões, mas nesta guerra que começou ontem, a única possibilidade de vitória que percebo para cada um dos oponentes, exatamente porque as pontes foram queimadas nos primeiros momentos por um deles, é a aniquilação total do outro. E, assim, todos sairão derrotados.
Resta-nos, ao término deste segundo dia de conflito, orar por todos os que estão sofrendo com ele, pelos mortos e feridos de ambos os lados, por aquelas dezenas de pessoas que estão no cativeiro dos terroristas, e pelas famílias dos envolvidos nesse confronto. E resta-nos orar para que o Senhor dos Exércitos não permita que essa guerra escale e que a paz seja restaurada na região. Só nos resta, neste fim de dia, orar para que os que sofrem sejam confortados.

PS: As reflexões aqui são personalíssimas e fruto de uma tristeza imensa em testemunhar essa tragédia, da qual todos sairão derrotados — não por acaso vivemos em um mundo de provas e expiações. Acredito que nos próximos dias teremos uma chuva de “especialistas” convidados a falar nos meios de comunicação e nas redes sociais sobre o conflito entre Israel e o Hamas. São os mesmos que sabiam tudo sobre Covid, depois passaram à condição de doutores em vacinas, em seguida profundos conhecedores de Rússia e catedráticos aptos a discorrer sobre a Guerra na Ucrânia, para posteriormente analisar com profundidade (de pires) o problema da fome crônica no Brasil (com os 700 milhões de brasileiros que disseram vagar pelo País), e, mais recentemente, mostraram-se conhecedores de terrorismo, crimes contra a humanidade e Tribunal Penal Internacional. Assim, recomendo a meus 8 (oito) leitores (talvez esse número tenha diminuído com a pandemia) moderação aos buscarem opiniões de especialistas — como diria Ésquilo, “na guerra, a primeira vítima é a verdade”. E, mesmo que não me tenham perguntado, indico as análises sérias, embasadas e confiáveis de Alessandro Visacro e de Leo Mattos (ainda não tive como fazê-lo, mas vou ler — e ouvir —, nos próximos dias, o que eles têm a dizer sobre essa crise). Recomendo muito os dois professores.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Viva o Rio Grande do Sul, Terra de Bravos!

Apesar dos pesares, dos problemas, dos bostas que surgem pensando enganar o povo com discursos calhordas imaginando enganar a sociedade.
Enfim,apesar da completa escassez de Homens capazes para conduzir o Rio Grande do Sul e seu povo em direção ao futuro, ... ... 
Parabéns meu Rio Grande do Sul!!!!


Como aurora precursora
Do farol da divindade

Foi o vinte de setembro

O precursor da liberdade

Refrão que acompanha cada estrofe:
Mostremos valor constância
Nesta ímpia e injusta guerra

Sirvam nossas façanhas

De modelo a toda terra

De modelo a toda terra

Sirvam nossas façanhas

De modelo a toda terra


Mas não basta pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo

***

domingo, 3 de setembro de 2023

Quanto Tempo até o "Gado" Voltar às Ruas?

A avaliação aponta que a estratégia do medo funciona por um tempo e na medida em que o governo Lula não consegue apagar a lembrança das ações da gestão Bolsonaro e com a piora do quadro econômico é mais do que natural que os patriotas voltem para as ruas — podendo trazer de arrasto aqueles que, iludidos pelas promessas do Nine Fingers, podem deixar Lula e sua quadrilha em apuros.
Lula nunca foi o candidato do sistema, mas desencarcerá-lo, descondena-lo e colocá-lo na presidência foi a única alternativa para eliminar uma gestão que a despeito de ter passado os quatro anos debaixo do mau tempo, contando com a má vontades da mídia (desejosa das verbas que perdeu), um ativismo do Judiciário sem precedentes, um Congresso que não aceitou perder o acesso à máquina e, para completar, primeiro uma pandemia midiática e depois a guerra na Ucrânia, conseguia apresentar números positivos em todos os segmentos da vida nacional.
Passados oito meses da atual gestão, é perceptível que Lula III tem uma gestão marcada pela volta das deploráveis práticas do toma-lá-dá-cá, negociatas, uso da máquina pública, financiamento inescrupuloso da estrutura de comunicação que serve como correia de transmissão da estupidez ao modo preconizado por Lenin e bravatas que oscilam entre a bizarrice e a insanidade. Lula III é o verdadeiro retrato daquilo que Lula sempre foi: um sindicalista ávido pelo poder, um batedor de carteiras e com um discurso sob medida para retardados e imbecis.
A farsa do 8 de janeiro — muito mais para o Incêndio do Reichstag, em 27 de fevereiro de 1933 do que para a versão tupiniquim da suposta Invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 — teve a intenção de tirar os patriotas das ruas, impor uma onda de terror e de medo e garantir um começo de gestão sem oposição ao “Inocente de Taubaté”. O problema é que os autores do roteiro se equivocaram em vários momentos, acreditaram demais na esperteza e estão com as mãos lambuzadas de lama e a cada momento precisam criar uma nova narrativa para reinventar a realidade.
O grande problema é que o velho morubixaba não se deu conta de que os tempos tinham mudado, desde a sua chegada ao poder em eleições com urnas eletrônicas, um cenário econômico mundial favorável e sem oposição. Lula pode, naquele momento, exercer na plenitude o que aprendeu ao longo do tempo na máquina sindical. Ao ser recolocado na presidência em 2022, outra vez pelas urnas eletrônicas vergonhosamente sem impressão do voto e sem sua respectiva contagem pública, Lula não se deu conta de que o Brasil tinha mudado e os seus métodos de punguista sindical já não serviam mais. Além de um cenário econômico adverso, Lula e seus saqueadores pela primeira vez se depararam com uma oposição de Direita no Congresso Nacional e um sentimento junto a sociedade de que o resultado apontado pelas urnas eletrônicas não correspondeu ao desejo da imensa maioria do povo.
Mas ele não quis entender essa realidade e, em lugar de buscar desarmar o clima, ele preferiu aprofundar o enfrentamento defendendo a censura, a perseguição e até a eliminação dos adversários — agora apontados como inimigos da Nação. Transformado em palhaço no cenário internacional, ridicularizado por sua postura sabuja e servil ao ponto de ser chamado de “cadelinha do Xi”, dando pitaco na invasão da Ucrânia e se posicionando ao lado de um carniceiro como Putin, elogiando o legado dos 350 anos de escravidão e outras patacoadas, Lula é apenas um cadáver político adiado que, de tão fedorento, é vaiado por brasileiros.
A sucessão de escândalos de compra de votos, mordomias com a sua acompanhante em viagens internacionais e a perversa, para ela, comparação com a figura de Michelle Bolsonaro, faz com que o casal tenha virado sinônimo de rejeição popular.
A gota d`água pode estar se aproximando com a debacle da economia. E os lulo-petistas sabem que o chefe do Mensalão perdeu o bônus popular que tinha e logo-logo, acreditam, o povo vai perder o medo e até por necessidade, voltará às ruas. E vaticinam: se o gado voltar para às ruas, os jumentos terão que fugir. Porque sabem-se minoria…

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Em Nome de Allah

Reportagem especial do Metrópoles.
Primeiro vieram os católicos, depois os evangélicos e, agora, o grupo Asham catequiza dezenas de crianças e adolescentes de São Gabriel da Cachoeira (AM) para convertê-los em muçulmanos.
O corre-corre era intenso em uma das maiores escolas públicas de Manaus (AM). Diante do fim do ciclo escolar, uma professora decidiu chamar os formandos do ensino médio para uma roda de conversa. O objetivo era falar sobre os planos para o futuro e qual faculdade pretendiam fazer, mas o assunto ali discutido acabou culminando em uma operação de resgate da Polícia Federal.
Entre os estudantes, havia um grupo formado por indígenas, que tinha entrado recentemente na escola. Em resposta à pergunta sobre o futuro, e para a surpresa da professora, um deles disse: “O tio falou que ano que vem a gente já vai para a Turquia”.
Abdulhakim Tokdemir leva indígenas de São Gabriel da Cachoeira até Manaus desde 2019
O tio em questão era Abdulhakim Tokdemir, chefe de um grupo islâmico que, desde 2019, tem catequizado dezenas de crianças e adolescentes indígenas da Amazônia para seguir o islã. Não há registro de islamização de indígenas antes disso na história do Brasil.
Além da doutrinação em território brasileiro, esses adolescentes são levados de suas comunidades, em São Gabriel da Cachoeira (AM), cidade mais indígena do Brasil e que fica na divisa com a Colômbia e a Venezuela, e enviados para Manaus, com parada em São Paulo e destino final na Turquia, quando completam a maioridade.

Da Amazônia para a Turquia
Na capital amazonense, crianças e adolescentes vivem em um sobrado transformado em internato, onde ganham nomes em árabe. Lá, eles ficam diariamente em contato com o idioma turco e árabe. Os internos são ensinados ainda sobre o Alcorão e seguem uma rotina religiosa, que inclui cinco orações diárias e respeito ao jejum do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos.
Alguns frequentam escolas de ensino regular, outros nem isso. Em São Paulo, ficam mais um tempo em outro tipo de internato, e os mais velhos são enviados para as cidades de Kütahya e Tarsus, interior da Turquia, onde são matriculados em escolas religiosas.
Pelo menos cinco indígenas já foram retirados do Brasil e levados para território turco de 2019 para cá. O grupo islâmico que comanda a doutrinação se autointitula Associação Solidária Humanitária do Amazonas (Asham), e só se interessa por garotos indígenas. Nenhuma menina indígena foi levada pela organização.
Os pais dos alunos assinam uma autorização informal para a entrada dos filhos nesse grupo islâmico, com a promessa de fazer faculdade. Para famílias em situação de vulnerabilidade, em uma das cidades mais remotas do Brasil, a possibilidade de uma vida com mais oportunidades é um grande atrativo.
A autorização, no entanto, não vale nada na prática. A instituição islâmica não tem cadastro para funcionar como abrigo nem a guarda das crianças e dos adolescentes. De olho no grupo, a polícia desconfia das boas intenções pregadas.

Da Mata para o Islã
Mais jovem de 10 irmãos, Ângelo (*nome fictício) nasceu e viveu até os 14 anos em Cucura Manaus, uma comunidade indígena no meio da Floresta Amazônica, perto da fronteira com a Colômbia, cerca de 4 Km ao norte da Comunidade Maracajá (às margens do rio Tiquié).
Filho de mãe do povo Tukano e pai Desana, o garoto indígena cresceu sob os cuidados dos irmãos mais velhos. Culturalmente, os indígenas da região recebem a responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos.
Em Cucura Manaus, a maior parte das moradias é de barro e de palha, interligadas por trilhas que cortam a mata. Os ribeirinhos, de diferentes etnias, vivem da roça e da pesca. O estreito igarapé Macacu passa pela comunidade e deságua no rio Tiquié, que, por sua vez, segue ziguezagueando no sentido leste até os rios Uaupés e Negro.
Foi nesse lugar que Ângelo ficou sabendo de uma história vinda da cidade mais próxima, São Gabriel da Cachoeira (AM). “Minha tia disse que uma associação ajudava as pessoas carentes”, resumiu Irene, de 28 anos, uma das irmãs de Ângelo, que mora no município.
Duas irmãs de Ângelo já tinham deixado a comunidade para estudar e trabalhar na cidade, assim como tios e primos, mas o caçula da família saiu da aldeia por um motivo bastante atípico: ele foi enviado para ser educado por um grupo de turcos islâmicos.
Um familiar de Ângelo negociou diretamente com Abdulhakim Tokdemir a ida do sobrinho para a Asham em Manaus (AM). O caminho é longo e feito pela água. Em linha reta, são mais de mil quilômetros.
Voadeira - Imagem de Vinícius Schmidt/Metrópoles
O caçula da família foi acomodado na chamada voadeira (uma canoa de metal) com um pequeno motor atrás (a rabetinha). O trajeto até São Gabriel da Cachoeira, local de onde partem embarcações para Manaus dura cinco dias.
A gente tem que levar mosquiteiros porque tem muito carapanã e pinhõ [tipos de mosquito]. Dá medo um pouco, por causa das cachoeiras. É muito cansativo”, lembra Irene, que só fez essa viagem duas vezes em toda sua vida.
Depois, são mais três dias de deslocamento até Manaus em um ferry boat (tipo de balsa) ou 24 horas em um barco menor chamado de “expresso”. A passagem custa cerca de R$ 500 por pessoa.

O caminho de Ângelo
Durante o caminho entre Cucura Manaus e São Gabriel da Cachoeira, Ângelo e seus familiares acampam na beira do rio para descansar e dormir.
As paradas são feitas, de preferência, em praias naturais e sob a proteção de árvores maiores, onde realizam as refeições que levam embaladas ou que pescam ali mesmo. As refeições também podem ser oferecidas pelos parentes (outros indígenas) de comunidades que ficam no caminho. Os pratos mais comuns são beiju, mingau e quinhãpira (um caldo de peixe apimentado).
Também é preciso fazer paradas em caso de chuva. Durante tempestades, ondas grandes são formadas no rio e podem naufragar embarcações.
A segunda parte da viagem é entre São Gabriel e Manaus. Essa parte pode ser feita de balsa ou em um barco maior, durando entre 24 horas e três dias. Na balsa, os viajantes dormem em redes, na parte superior.
Os turcos pagam a passagem e recebem o novo integrante no porto manauara de São Raimundo.

Vai e volta
Depois de um ano morando na associação islâmica em Manaus, na tarde do dia 28 de fevereiro de 2023, Ângelo foi um dos 14 adolescentes e uma criança resgatados no sobrado em que eles ficavam em Manaus, em uma operação com apoio da Polícia Federal por causa de irregularidades na documentação e nas condições do imóvel.
Equipes de conselheiros tutelares, com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), constataram três freezers cheios de carnes vencidas desde 2021 — o alimento era consumido pelos adolescentes.
Os agentes também identificaram que a instituição muçulmana não tinha a guarda das crianças e dos adolescentes, o que seria necessário para mantê-los longe das famílias. Além disso, o registro do CNPJ da Asham não era para abrigo e não havia cadastro na prefeitura.
Todos os adolescentes e crianças resgatados voltaram para a casa dos pais, entre eles Ângelo. Os conselheiros tutelares e a polícia não têm um número exato de quantos indígenas passaram pela instituição, mas sabem que são dezenas.
Em outubro, eram oito abrigados com idades entre nove e 15 anos. No começo de fevereiro, havia 18 adolescentes e crianças.
Ângelo, que atualmente tem 16 anos, recebeu a reportagem em sua atual casa, no bairro Miguel Quirino, na periferia de São Gabriel da Cachoeira, duas semanas após ter deixado o centro islâmico.
A maior parte das crianças, dos adolescentes e jovens levados pelo grupo islâmico é desse bairro. Um parente de Ângelo, que mora na mesma vizinhança, ajuda a escolher os adolescentes e as crianças que vão ingressar no grupo muçulmano. Um primo de Ângelo já está na Turquia há dois anos.
Ângelo vive agora com duas irmãs mais velhas e dois sobrinhos em uma casa cercada de pés de açaí e terra batida. As paredes externas da moradia são feitas por blocos de cimento, e os cômodos, divididos por paredes improvisadas, fabricadas com tecidos e uma placa de madeira pintada com uma ilustração do Fuleco, o mascote da Copa do Mundo de 2014.
Diferentemente dos outros membros da casa, o garoto recém-chegado de Manaus não tem um quarto privativo. Ele dorme em uma cama na cozinha, dividindo espaço com geladeira, fogão e alimentos.

Obrigado a rezar
Com sorriso tímido e olhar inicialmente desconfiado, Ângelo contou que até gostava de viver em Manaus com outros garotos da idade dele e os “abi” (irmão em turco), que é a forma como eram chamados os três turcos, assistentes de Abdulhakim Tokdemir, que vivem na instituição com os meninos indígenas. No entanto, o que ele não gostava era das rezas diárias, que no começo eram opcionais, mas, depois, passaram a ser obrigatórias.
O responsável acordava a gente às cinco da madrugada. Nós, então, arrumávamos as nossas camas, limpávamos a casa e tomávamos o café. Depois do banho, os professores nos davam aulas de árabe e turco. As classes de línguas eram seguidas de um momento de oração. Em seguida, a gente lavava os uniformes da escola. Nós rezávamos antes da janta e de novo antes de dormir. Essa era a nossa rotina todos os dias, contou o adolescente Desana na língua Tukano.
Ângelo fala português, mas só se sentiu à vontade para contar mais sobre a situação da instituição islâmica falando em tukano, língua materna de diferentes povos da região do rio Uaupés, onde fica Cucura Manaus, na parte de baixo da chamada Cabeça do Cachorro. A região noroeste do Amazonas é conhecida por esse nome por causa do formato do mapa — que lembra a cabeça de um animal.

Além do português, São Gabriel da Cachoeira tem outras três línguas oficiais
TUKANO

Além do povo Tukano, a língua tukano é usada por outros povos dos rios Uaupés, Tiquié e Papuri. O idioma acabou se transformando em língua franca nessa região para que diferentes povos se comuniquem

BANIWA

Nome dado aos povos que falam diferentes línguas da família Aruak, na região do rio Içana. No fim dos anos 1990, a gramática do idioma foi unificada — a língua também é falada pelo povo Koripako

NHEENGATU

Conhecida como Língua Geral ou Tupi Moderno, criada a partir do Tupinambá. O idioma é falado pelos Baré e Warekena dos rios Xié e Alto Rio Negro


Vergonha de rezar
No dia a dia dessa espécie de internato islâmico criado em Manaus, as atividades religiosas aconteciam com mais intensidade durante a manhã. Parte dos alunos ia para a escola regular à tarde. Por falta de documentação, oito estavam sem matrícula na rede estadual neste ano.
As aulas de árabe, por exemplo, eram repetições de páginas do Alcorão que deveriam ser decoradas em detalhes. Nas sextas-feiras, os jovens eram levados para uma reza especial na mesquita. Durante feriados e folgas prolongadas, os alunos tinham intensivão de árabe e turco. Nas férias, voltavam para a casa dos pais em São Gabriel da Cachoeira.
Foi tentado contato com a mesquita, que funciona no Instituto Islâmico de Manaus, mas os pedidos de entrevista não foram atendidos.
Durante uma visita à instituição islâmica em janeiro de 2023, conselheiros tutelares de Manaus relataram que se depararam com um local insalubre: um quarto com beliches e “muitas carnes expostas penduradas”. “Para ser um abrigo, precisa melhorar muito”, escreveram os conselheiros em um relatório.
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Polícia Federal verifica a qualidade da comida refrigerada durante operação que retirou jovens indígenas da Asham

No islamismo, o abate dos animais para consumo deve ser feito de um jeito específico, evocando o nome de Deus (Alá). As carnes exportadas para países muçulmanos, por exemplo, são produzidas seguindo essa forma de corte.
Por conta disso, os turcos que moravam com crianças e adolescentes indígenas compravam frangos e bovinos vivos. Eles mesmos matavam os animais. As aves eram abatidas na própria instituição, e os bovinos sacrificados atrás de um açougue de Manaus. Isso explicaria as carnes penduradas no quarto com beliches.
No mês do Ramadã, o almoço não era servido, e os adolescentes tinham apenas café da manhã e jantar reforçados. Nesse período, os muçulmanos celebram a data em que Mohammad recebeu a revelação da palavra de Alá. Eles realizam um jejum do nascer ao pôr do sol.
Mesmo quando não era época do Ramadã, a alimentação dos indígenas abrigados era inadequada, segundo o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).
De acordo com o conselho, o cardápio da instituição ficava longos períodos sem proteína. Durante uma visita em outubro de 2022, os turcos serviram um almoço apenas com feijão, arroz, farofa e refrigerante. Uma criança disse que sentia vontade de comer peixe e farinha, base da alimentação nas comunidades ribeirinhas da fronteira com a Colômbia.
Abdulhakim diz que apenas os adultos eram obrigados a seguir o Ramadã, mas os pais e adolescentes disseram que todos eram incluídos no jejum. O líder da Asham também diz que houve um período em 2022 sem carne de gado, por falta de fornecedor, mas que havia frango e peixe. Sobre a carne vencida, seria uma doação de São Paulo, que não teria sido consumida, mas os internos dizem que comeram.
Nos fins de semana, os jovens podiam jogar futebol em um campo de grama sintética, comer pizza e, às vezes, passear pela Praia de Ponta Negra, mas não tinham autorização para entrar na água, só era permitido molhar as pernas e as mãos.
Eles levavam a gente na Ponta Negra para jogar bola. No fim do jogo, antes de retornar para casa, faziam reza com a gente. Eu ficava com vergonha nesse momento de reza em público”, relata Ângelo, dando uma risada. “Me dá vergonha só de contar.
Outros dois adolescentes que viveram na instituição acrescentaram que era proibido tomar banho no rio porquenão podia mostrar as partes e ficar sem roupa, ... porque é a religião deles.

Dupla doutrinação
No quarto da irmã mais velha de Ângelo, o guarda-roupa de madeirite é enfeitado com uma porção de símbolos católicos: uma imagem de Nossa Senhora de Fátima grudada com fita adesiva, Jesus Cristo crucificado, São Jorge sobre o cavalo branco matando o dragão e um terço de cruz branca com bolinhas coloridas.
Eu não sei se os turcos querem que a gente seja igual a eles… Eu acho. Porque a gente é católico e não sei qual a religião deles, pontua Rosa, a dona do quarto, ao comentar a diferença religiosa.
A comunidade de onde a família de Ângelo veio passou por um processo de catequização católica, desde o começo do século 20, por missionários da Congregação Salesiana. A família, que é Desana, se converteu ao catolicismo desde antes de seus avós.
Meu pai começou a trabalhar com os missionários para ajudar a catequizar o povo Hupda quando eu era pequena. Aí ele foi ajudando e ficou. Até hoje meu pai catequiza. Ele pega a estrada por meia hora e pouco. Ele acorda 6h da manhã e chega lá às 7h, conta Irene.
O povo Hupda fala maku, uma língua totalmente diferente de tukano, baniwa ou nheengatu, os idiomas oficiais do município. Eles são considerados de recente contato com não indígenas. Muitos não falam português e não têm habitação fixa.
Para realizar esse trabalho de catequização católica, o pai de Ângelo sai de sua moradia, em Cucura Manaus, por volta das 6h e caminha por cerca de 45 minutos até Fundação Nova, uma comunidade mais ao norte para dentro da floresta, onde vive o povo dessa etnia.

Mosaico da Fé
A população estimada de São Gabriel da Cachoeira era de 46,3 mil habitantes em 2020. Desse total, mais de 75% são indígenas. Isso fica evidente andando pelas ruas da cidade. O prefeito é indígena, o dono do supermercado é indígena, o padeiro é indígena. O pastor e o padre também.
O município fica na região denominada como Médio e Alto do Rio Negro e é composto por uma área urbana com mais infraestrutura e 750 comunidades e povoados espalhados nas beiras dos rios e nas matas, que englobam 23 etnias.
A área do município é gigantesca, maior que a do estado de Santa Catarina e da Guatemala, por exemplo. Navegar de uma comunidade para outra depende de embarcações e gasolina, um insumo valioso e motivo de disputa.

Município mais indígena do país é o terceiro com mais território
O valor do litro da gasolina chega a R$ 15 nas aldeias mais longínquas, três vezes mais que o preço médio no Brasil. Em algumas áreas, o insumo é adquirido mediante troca por objetos e alimentos.

“Eu não vendi meu filho”
Embora São Gabriel da Cachoeira tenha um território tão amplo, as informações já circulam rapidamente no município, ainda mais com o aumento de comunidades com sinal de internet e a propagação dos smartphones.
A ida de dezenas de crianças e adolescentes para uma instituição islâmica que leva indígenas à Turquia não passou batida pelo sistema informal de notícias, mais conhecido como “fofoca”.
Não foi difícil encontrar moradores de São Gabriel da Cachoeira que diziam saber alguma coisa sobre a associação turca que levava filhos dos moradores, mas os comentários costumam estar acompanhados de estigmas e preconceitos.
“Relação com terrorismo”, “obrigados a usar drogas”, “iam transformar os meninos em homens-bomba” e “venda de crianças” são alguns dos relatos ouvidos. Inclusive autoridades e agentes públicos, ao conversar com a reportagem de forma reservada, mencionaram comentários semelhantes, embora não se tenha nenhum indício de terrorismo ou tráfico humano.
Os rumores se intensificaram depois que os garotos indígenas foram retirados da instituição em uma operação envolvendo a PF, conselhos tutelares e a Funai. Uma comitiva, incluindo o prefeito, foi para o porto de São Gabriel receber as crianças e os adolescentes, que chegaram de ferry boat no dia 4 de março, acompanhados de uma assistente social.
A fofoca que mais ouvimos era que os turcos iam vender as nossas crianças. Muita gente falava na minha cara: ‘Certeza que está recebendo dinheiro’. Eu não ganho dinheiro com isso. Mas eu não me preocupo, sei que meu filho vai voltar. Eu não vendi meu filho”, conta em tom melancólico o carpinteiro do povo Tuyuka Osvaldo Dias Sanches, de 43 anos.
Osvaldo é o principal articulador da ida dos indígenas para a Asham em Manaus. Ele organizou a viagem de Ângelo, por exemplo, que é seu parente. O filho de Osvaldo, o jovem Edney, hoje com 19 anos, fez parte do primeiro grupo a ir para a capital amazonense e também foi o primeiro a se mudar para a Turquia, ainda com 16 anos.
Em dias difíceis, quando chega a faltar comida, Osvaldo pede ajuda para Abdulhakim Tokdemir, que envia pequenas quantias de dinheiro, como, por exemplo, um montante de R$ 200. Um pai de um outro jovem que foi levado para fora do país ganhou uma cirurgia de catarata.
Diretora na Funai, Lúcia Alberta Baré vê com desconfiança esse assistencialismo da instituição islâmica. Ela reconhece a eficiência de uma política de assistência para povos em situação vulnerável, como a entrega de cestas básicas, mas, no caso da Asham, entende que há má-fé e que o objetivo real do grupo é o proselitismo religioso.
O que se tem de conhecimento sobre esse grupo islâmico é que eles usavam a questão da cesta de alimentos e a doação de dinheiro como uma forma de manipular esses pais, para que eles não fizessem denúncias e não buscassem mais informações sobre essas ações que esse grupo desenvolve.

Autorização inválida
Ao lado da esposa, Nazária, de 52 anos, Osvaldo contou que recebe demandas de Abdulhakim Tokdemir sobre a quantidade de garotos que deve selecionar. Muitos dos escolhidos são amigos e familiares do mesmo bairro, o Miguel Quirino.
Eu falava com os pais deles, se estavam interessados em enviar seus filhos para estudar em Manaus, São Paulo e fora do Brasil. Eu explico para os pais: ‘Como a gente não tem dinheiro para pagar os estudos, na instituição deles ninguém gasta nada, ninguém paga, tu não vai gastar nada, eles vão comprar tudinho — roupa, comida, tudo que precisar é com eles, explica Osvaldo.
Nos relatos dos familiares ouvidos pela reportagem, é comum a citação do nome de Osvaldo. A ida de Edney para a Turquia costuma ser usada como um exemplo de que o esquema dá certo. “Se o filho do Osvaldo conseguiu ir e está tudo bem, então meu filho também pode conseguir”, diz um dos familiares ouvidos pela reportagem.
De acordo com o carpinteiro, Tokdemir costuma ser específico nos pedidos: “Este ano eu vou querer 10 alunos”. Por conta das exigências, houve uma dificuldade inicial para conseguir levar os filhos dos moradores. O turco ainda exige a autorização assinada pela mãe e pelo pai. Nos casos dos filhos registrados apenas pela matriarca, basta uma assinatura.
A autorização é chamada de “termo de consentimento” e tem a assinatura dos pais da criança reconhecida em cartório. No entanto, segundo as autoridades, esse documento não tem validade jurídica para a Asham manter a guarda dos garotos.
O texto tira a responsabilidade da associação islâmica e de seus integrantes de qualquer incidente que aconteça com as crianças e os adolescentes. Mas perante a lei, a cláusula não vale nada.
Mesmo com esse documento, tanto a instituição quanto os pais podem ser responsabilizados em caso de violência contra a integridade das crianças e dos adolescentes. É o que explica a advogada Luiza Simonetti, presidente da Comissão de Direito de Família e Adoção da OAB do Amazonas.
O consentimento dos pais não é suficiente para institucionalizar uma criança. Eles precisam formalizar essa vontade para o Judiciário”, explica a advogada. Segundo Luiza Simonetti, esse processo passa pelo Ministério Público e pelo Juizado da Infância. Um magistrado deve autorizar o ingresso da pessoa com menos de 18 anos em uma instituição.

Pioneiro
O primeiro grupo a ir para a Asham em Manaus foi formado por cinco adolescentes, entre eles o filho de Osvaldo, Edney, que está atualmente na Turquia. Os outros quatro “não se adaptaram” à instituição e voltaram para São Gabriel da Cachoeira.
Desde que a instituição islâmica passou a atuar no Amazonas, crianças e adolescentes retornaram para a casa dos pais por opção ou, segundo a Asham, por mau comportamento.
De acordo com Abdulhakim, houve um caso de um adolescente que teria assaltado um posto de gasolina com colegas da escola. Também há relatos dos pais de alunos sobre um garoto que teria aplicado pasta de dente no rosto dos colegas enquanto eles dormiam, como forma de brincadeira.
Uma mãe disse que o filho foi expulso porque malinava muito (fazia travessuras) e ficava rindo do sotaque dos assistentes turcos, que não falam bem português. Assim, a instituição vem mantendo apenas os adolescentes que consideram mais adequados e comportados.
Essas características fazem parte, inclusive, das exigências de Abulhakim a Osvaldo, na escolha dos novos alunos. A preferência é por adolescentes com idade entre 12 e 15 anos, que seriam obedientes e que realmente quisessem estudar.

Uma nova perspectiva
No início de 2023, em paralelo à investigação da Polícia Civil, outros integrantes da Polícia Federal do Amazonas começaram a se debruçar novamente sobre o caso da Asham.
Membros recém-empossados do governo federal, mais especificamente da Funai e do Ministério de Direitos Humanos, em Brasília, começaram a articular uma solução junto à PF, ao conselho tutelar de Manaus e a assistentes sociais de São Gabriel da Cachoeira.
Conselheiros tutelares das duas cidades realizaram pelo menos quatro visitas na instituição durante o mês de fevereiro, quando constataram que a associação não teria nenhum respaldo judicial para funcionar, além de questões sanitárias envolvendo alimentação e limpeza.
Todas as informações que os conselheiros colheram foram repassadas à PF. Em uma operação conjunta, as crianças acabaram retiradas do local e levadas de volta para São Gabriel da Cachoeira.
Procurada pela reportagem, a corporação disse que não passa informações sobre investigações em andamento.

Bastidores
O novo desdobramento sobre o caso dos indígenas levados pelo grupo islâmico começou no alto de um prédio de Brasília, com vista para o Parque da Cidade, na sede da Fundação Nacional do Indígena (Funai).
A atual coordenadora de Gênero, Assuntos Geracionais e Participação Social da Funai, Lídia Lacerda, voltou cismada de uma viagem de rotina que fez a São Gabriel da Cachoeira em outubro de 2022. Aos prantos, uma conselheira tutelar do Alto do Rio Negro contou sobre a situação dos turcos que levavam crianças e adolescentes.
Lídia então ajudou a articular a retirada das crianças junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), do novo Ministério dos Direitos Humanos.
Por mais que a instituição [Asham] pense em apresentar documentação e regularizar a sua atuação, antes desse processo, as crianças devem ser retiradas. O modo como elas estavam lá é totalmente ilegal. É ilegal do ponto de vista não só da criança indígena, mas é ilegal para qualquer criança e adolescente”, frisa a servidora.

Negação da cultura
Acima de Lídia, a diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, Lúcia Alberta, acompanhou a situação, que a fez relembrar sua infância difícil. Lúcia é do povo Baré e nasceu na região da Cabeça do Cachorro, em uma comunidade na divisa com a Venezuela.
A gestora Baré recebeu a reportagem na sede da Funai usando brincos com desenhos indígenas que contam a história da região de onde ela veio. Um dos brincos tem o desenho da “cobra-canoa”, que, segundo a cosmologia do Alto do Rio Negro, serviu de transporte para os primeiros seres humanos e saiu espalhando as comunidades nas margens do rio.
Lúcia ficou espantada ao saber que adolescentes indígenas estavam sendo proibidos de mergulhar no rio, tendo permissão apenas para molhar as mãos e os pés. Segundo ela, isso é a negação da própria cultura.
Somos povos ribeirinhos, o Rio Negro e os seus afluentes são nossa vida. Consegue imaginar um indígena da região do Rio Tiquié proibido de tomar banho no rio? Essa é uma das maiores afrontas, porque, para nós, o mergulho na água, além da limpeza do corpo, é limpeza da nossa alma”, pondera.
Assim como as crianças e os adolescentes levados pela Asham, Lúcia deixou sua comunidade quando tinha apenas 9 anos de idade para poder estudar na cidade.
Quando não tem escolas na comunidade, as pessoas procuram escolas na cidade. E lá na cidade não tem escolas indígenas específicas e diferenciadas. Se as escolas não dão resposta para os projetos de vida dos povos indígenas, eles vão procurar outras alternativas, analisa Lúcia Alberta.
Em entrevista ao pesquisador Gersem Baniwa, em 2011, Lúcia Alberta Baré definiu a escola indígena “como espaço de diálogo possível entre os conhecimentos indígenas e os conhecimentos da sociedade moderna”.
A diretora da Funai defende que as escolas indígenas devem ter uma pedagogia própria, com professores que falam as línguas dos povos dos alunos, para ter uma comunicação melhor com eles, mas também deve ter um bom ensino formal.
A estratégia deve ser de levar conhecimentos não indígenas  ou mesmo de outros povos indígenas , mas de forma harmônica e respeitosa, sem colocar aquele conhecimento como melhor ou superior.
No entanto, além de não ter escolas indígenas com esse diferencial, as instituições de ensino de São Gabriel da Cachoeira passam por outros tipos de precariedade, como professores com salários baixos e contratos temporários que chegam a ser interrompidos antes do fim do ano letivo. A falta de atividades esportivas e culturais para os jovens também é uma questão.
A vulnerabilidade desses povos, tanto social como educacional, os levou a serem cooptados por esses turcos, que ofereceram educação melhor para os filhos, mas por trás tinha outra coisa, que nós estamos acompanhando, mais ligado ao proselitismo religioso.

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Fonte:  Metrópoles